Dor abdominal aguda

PorParswa Ansari, MD, Hofstra Northwell-Lenox Hill Hospital, New York
Revisado/Corrigido: jul. 2024
Visão Educação para o paciente

A dor abdominal é comum e geralmentesem maiores consequências. A dor abdominal aguda e intensa, entretanto, é quase sempre um sintoma de doença intra-abdominal. Pode ser a única indicação de necessidade de intervenção cirúrgica, devendo-se averiguá-la prontamente: gangrena ou perfuração do intestino podem ocorrer em < 6 horas do início dos sintomas em determinadas situações (p. ex., interrupção do fluxo sanguíneo intestinal por estrangulamento e obstrução ou êmbolo arterial). Dor abdominal é uma preocupação especial em pacientes muito jovens ou muito idosos e naqueles portadores de infecção por HIV ou aqueles que tomam imunodepressivos (incluindo corticoides).

Em livros, descrições de dores abdominais têm limitações porque as pessoas reagem à dor de maneiras diferentes. Alguns, em particular os mais idosos, são impassíveis, ao passo que outros exageram seus sintomas. Crianças, lactentes e alguns idosos podem ter dificuldades em localizar a dor (1).

O termo abdome agudo refere-se a sinais e sintomas tão graves e preocupantes que um procedimento cirúrgico deve ser considerado.

Referência geral

  1. 1. Lyon C, Clark DC. Diagnosis of acute abdominal pain in older patients. Am Fam Physician. 2006;74(9):1537-1544.

Fisiopatologia da dor abdominal aguda

A dor visceral vem de vísceras abdominais, inervadas por fibras autonômicas que respondem basicamente a sensações de distensão e contração muscular — não a cortes, lacerações ou irritação local. A dor visceral é tipicamente vaga, imprecisa e nauseante. É mal localizada e tende a ser percebida em áreas que correspondem à origem embriológica da estrutura afetada. Estruturas do intestino proximal (estômago, duodeno, fígado e pâncreas) causam dor abdominal na porção superior do abdome. Estruturas do intestino médio (intestino delgado, colo proximal e apêndice) causam dor periumbilical. Estruturas do intestino distal (colo distal e aparelho geniturinário) causam dor abdominal baixa.

A dor somática vem do peritônio parietal, o qual é inervado por nervos somáticos que respondem à irritação secundária a processos infecciosos, químicos ou inflamatórios. A dor somática é forte e bem localizada.

A dor referida é a dor percebida em locais distantes de sua origem e resulta da convergência de fibras nervosas na medula espinal. Exemplos comuns incluem dor escapular decorrente de cólica biliar, dor inguinal decorrente de cólica renal e dor em ombro secundária a sangue ou inflamação irritando o diafragma.

Peritonite

A peritonite é a inflamação da cavidade peritoneal.

Sua causa mais séria é a perfuração do trato gastrointestinal, que produz inflamação química imediata seguida rapidamente de infecção por microrganismos intestinais. A peritonite também pode resultar de qualquer condição abdominal que produz inflamação intensa (p. ex., apendicite, diverticulite, obstrução intestinal estranguladora, pancreatite, doença inflamatória pélvica e isquemia mesentérica).

O sangramento intraperitoneal de qualquer origem (p. ex., aneurisma roto, trauma, cirurgia, gestação ectópica) é irritante e causa peritonite.

O bário causa peritonite grave e nunca deve ser administrado a um paciente com suspeita de perfuração do trato gastrointestinal. No entanto, meios de contraste hidrossolúveis podem ser utilizados com segurança.

Derivações peritoneossistêmicas, drenos e cateteres de diálise na cavidade peritoneal predispõem o paciente à peritonite infecciosa, assim como o líquido ascítico.

Raramente ocorre peritonite bacteriana espontânea, na qual a cavidade peritoneal é infectada por bactérias provenientes da corrente sanguínea. Peritonite bacteriana espontânea ocorre principalmente em pacientes com cirrose e ascite.

A peritonite faz com que o líquido se desvie para a cavidade peritoneal e intestino, causando desidratação e distúrbios eletrolíticos graves. A síndrome de desconforto respiratório agudo do adulto pode se desenvolver rapidamente. Insuficiência renal, insuficiência hepática e coagulação intravascular disseminada podem se seguir. Sem tratamento, a morte ocorre em questão de dias.

Etiologia da dor abdominal aguda

Muitas doenças intra-abdominais causam dor abdominal (ver figura Localização da dor abdominal e possíveis causas); algumas são irrelevantes, mas outras representam risco de vida imediato e exigem diagnóstico rápido e cirurgia de urgência. Estas incluem ruptura de aneurisma da aorta abdominal (AAA), víscera perfurada, isquemia mesentérica e gestação ectópica rota. Outras (p. ex., obstrução intestinal, apendicite, pancreatite aguda grave) também são sérias e igualmente urgentes. Várias doenças extra-abdominais também causam dor abdominal (ver tabela Causas extra-abdominais de dor abdominal).

Localização da dor abdominal e possíveis causas

Tabela
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A dor abdominal em recém-nascidos, lactentes e crianças pequenas apresenta múltiplas causas não encontradas em adultos. Essas causas são

Avaliação da dor abdominal aguda

Avaliação de dor branda e intensa segue o mesmo processo, embora no caso de dor mais intensa o tratamento se faça simultaneamente e envolva consulta a um cirurgião. História e exame físico geralmenteafastam praticamente todas as possíveis causas, sendo o diagnóstico final confirmado pelo uso judicioso de testes laboratoriais e de imagem. As causas que potencialmente provoquem risco de vida devem ser sempre afastadas antes de se concentrar em causas menos graves.

Em pacientes gravemente enfermos com dor abdominal intensa, a medida diagnóstica mais importante pode ser uma laparotomia exploradora.

Em pacientes levemente enfermos, conduta expectante e avaliação diagnóstica atentas podem ser os melhores procedimentos.

História

Uma anamnese completa geralmente sugere o diagnóstico (ver tabela Anamnese para os pacientes com dor abdominal aguda). Especialmente importantes são a localização e as características da dor (ver figura Localização da dor abdominal e possíveis causas), bem como a história de sintomas semelhantes e sinais e sintomas associados. Sintomas concomitantes, como azia, diarreia, obstipação, icterícia, melena, hematúria, hematêmese, perda ponderal e muco ou sangue nas fezes ajudam a direcionar avaliação posterior.

A história farmacológica deve incluir detalhes relacionados ao uso de medicamentos prescritos, drogas ilícitas e álcool. Muitos medicamentos podem ser lesivos ao trato digestório. Prednisona e imunossupressores podem inibir a resposta inflamatória à perfuração ou peritonite e resultam em menos dor, sensibilidade ou leucocitose do que se poderia esperar. Os anticoagulantes podem aumentar as chances de sangramento e formação de hematomas. O álcool predispõe à pancreatite.

Tabela
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É importante averiguar condições clínicas e cirurgias abdominais conhecidas.

Deve-se perguntar às pacientes em idade fértil se elas estão ou podem estar grávidas.

Exame físico

A aparência geral é importante. Um paciente de aparência feliz e confortável raramente tem um problema sério; diferentemente de um paciente ansioso, pálido, diaforético ou com dor óbvia. Pressão arterial, pulso, nível de consciência e outros sinais de perfusão periférica devem ser avaliados. Entretanto, o foco do exame é o abdome, começando-se por inspeção e ausculta, seguidas por percussão e palpação. É essencial realizar toque retal e exame pélvico (em mulheres e possivelmente adolescentes do sexo feminino) para localizar áreas doloridas, massas e sangue.

A palpação deve ser iniciada gentilmente, longe da área de dor mais intensa, detectando áreas de desconforto mais específico, assim como a presença de defesa abdominal, rigidez e descompressão brusca (todos sugerem irritação peritoneal) e qualquer massa. A reação de defesa abdominal consiste em contração involuntária dos músculos abdominais um pouco mais lenta e mais sustentada do que o recuo voluntário rápido, encontrado em pacientes mais sensíveis e ansiosos. A descompressão brusca é um recuo diferente após a retirada rápida da mão do examinador. A área inguinal e todas as cicatrizes cirúrgicas devem ser palpadas à procura de hérnias.

Sinais de alerta

Alguns achados aumentam a suspeita de uma etiologia mais grave:

  • Dor intensa

  • Sinais de choque (p. ex., taquicardia, hipotensão, diaforese, confusão mental)

  • Sinais de peritonite

  • Distensão abdominal

Interpretação dos achados

Distensão, em especial na presença de cicatrizes, timpanismo à percussão e peristaltismo hiperativo ou borborigmos com oscilações, sugere fortemente obstrução intestinal.

A dor intensa em um paciente com um abdome silencioso que está deitado o mais imóvel possível sugere peritonite; a localização do ponto sensível sugere a etiologia (p. ex., dor no hipocôndrio direito sugere colecistite e no quadrante inferior direito sugere apendicite), mas pode não ser diagnóstica.

A dor na região dorsal com choque sugere rompimento de aneurisma da aorta abdominal, especialmente se houver uma massa sensível e pulsátil.

O choque e o sangramento vaginal em uma mulher grávida sugerem gestação ectópica rompida.

Equimoses dos ângulos costovertebrais (sinal de Grey Turner) ou ao redor do umbigo (sinal de Cullen) sugerem pancreatite hemorrágica, mas não são muito sensíveis a esse distúrbio.

A anamnese costuma ser sugestiva (ver tabela Anamnese em pacientes com dor abdominal aguda). Dor leve a moderada na presença de peristaltismo ativo normal sugere uma doença não cirúrgica (p. ex., gastroenterite), mas também pode ser uma manifestação precoce de um distúrbio mais sério. Um paciente que está se contorcendo tentando encontrar uma posição mais confortável tem maior probabilidade de apresentar um mecanismo obstrutivo (p. ex., cólica renal ou biliar).

Cirurgia abdominal prévia torna mais provável a obstrução causada por adesões.

A aterosclerose generalizada aumenta a possibilidade de infarto do miocárdio, aneurisma da aorta abdominal e isquemia mesentérica.

Infecção por HIV torna mais prováveis as causas infecciosas.

Exames

Os testes são selecionados com base na suspeita clínica:

  • Teste urinário de gestação para todas as mulheres em idade fértil

  • Exames de imagem específicos de acordo com a suspeita diagnóstica

Geralmente realizam-se testes convencionais (p. ex., hemograma completo, bioquímica, urinálise), mas estes são de pouco valor devido à sua baixa especificidade; os pacientes com doença grave podem ter resultados normais. Os resultados anormais não fornecem um diagnóstico específico (a urinálise, p. ex., pode mostrar piúria ou hematúria em uma ampla variedade de condições) e podem ocorrer também na ausência de doença grave. Uma exceção é a lipase sérica, que sugere fortemente o diagnóstico de pancreatite aguda.

Deve-se realizar um teste urinário rápido de gestação em todas as mulheres em idade fértil, pois um achado negativo exclui efetivamente uma gestação ectópica rompida.

Radiografias abdominais em série, com o paciente em pé e deitado (decúbito lateral esquerdo para radiografia abdominal e incidência anteroposterior para radiografia do tórax em pacientes que não conseguem ficar em pé) devem ser realizadas no caso de suspeita de perfuração ou obstrução. Entretanto, essas radiografias na posição vertical raramente são diagnósticas para outras doenças e não precisam ser realizadas automaticamente.

Deve-se realizar ultrassonografia no caso de suspeita de doença do trato biliar ou gestação ectópica (sonda transvaginal) e suspeita de apendicite em crianças. A ultrassonografia também pode detectar aneurisma da aorta abdominal, mas não identificar as rupturas com fidedignidade.

A TC helicoidal sem contraste é a modalidade de escolha para suspeita de cálculos renais (1). TC com contraste oral e IV é diagnóstica em cerca de 95% dos pacientes com dor abdominal significativa e reduziu acentuadamente a taxa de laparotomia negativa. Entretanto, não se deve permitir que imagens avançadas latentes adiem a cirurgia em pacientes com sinais e sintomas definitivos.

Referência sobre avaliação

  1. 1. Expert Panel on Urological Imaging, Gupta RT, Kalisz K, et al. ACR Appropriateness Criteria® Acute Onset Flank Pain-Suspicion of Stone Disease (Urolithiasis). J Am Coll Radiol. 2023;20(11S):S315-S328. doi:10.1016/j.jacr.2023.08.020

Tratamento da dor abdominal aguda

Alguns médicos acreditam que aliviar a dor antes de um diagnóstico definitivo interfere em sua habilidade de avaliar. No entanto, doses moderadas de analgésicos intravenosos (p. ex., fentanila 50 a 100 mcg; morfina 4 a 6 mg) não mascaram os sinais peritoneais e, diminuindo a ansiedade e o desconforto, com frequência facilitam o exame (1).

Referência sobre tratamento

  1. 1. Manterola C, Vial M, Moraga J, Astudillo P. Analgesia in patients with acute abdominal pain. Cochrane Database Syst Rev. 2011;(1):CD005660. Publicado em 19 de janeiro de 2011. doi:10.1002/14651858.CD005660.pub3

Pontos-chave

  • Procurar primeiro as causas com risco de vida.

  • Descartar gestação em mulheres em idade fértil.

  • Buscar sinais de peritonite, choque e obstrução.

  • Exames de sangue são de valor mínimo.

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