Cardiopatias durante a gestação

PorLara A. Friel, MD, PhD, University of Texas Health Medical School at Houston, McGovern Medical School
Revisado/Corrigido: set. 2023
Visão Educação para o paciente

As doenças cardiovasculares, incluindo as cardiomiopatias, são responsáveis por aproximadamente 26% de todas as mortes relacionadas com a gestação. Nos Estados Unidos, em virtude da significativa diminuição da incidência da doença cardíaca reumática, a maioria dos problemas cardíacos durante a gestação resulta de anomalias congênitas. Entretanto, no sudeste da Ásia, África, Índia, Oriente Médio e regiões da Austrália e Nova Zelândia, a cardiopatia reumática ainda é comum.

Apesar das melhorias dramáticas nas taxas de sobrevivência e qualidade de vida para pacientes com cardiopatias congênitas graves e outras doenças cardíacas, a gestação continua sendo desaconselhável para mulheres com certas condições de alto risco como (1):

  • Hipertensão pulmonar (pressão sistólica da artéria pulmonar > 25 mmHg) causada por qualquer doença, incluindo síndrome de Eisenmenger

  • Coarctação da aorta, se não corrigida ou se acompanhada de aneurisma

  • Síndrome de Marfan com diâmetro da raiz da aorta de > 4,5 cm

  • Estenose aórtica sintomática grave ou estenose mitral grave

  • Valva aórtica bicúspide com diâmetro da aorta ascendente > 50 mm

  • Um ventrículo único e função sistólica comprometida (se tratada ou não com o procedimento de Fontan)

  • Cardiomiopatia com fração de ejeção < 30% ou insuficiência cardíaca classe III ou IV da New York Heart Association (NYHA) [ver tabela Classificação de insuficiência cardíaca da New York Heart Association (NYHA)]

Referência geral

  1. 1. European Society of Gynecology (ESG); Association for European Paediatric Cardiology (AEPC); German Society for Gender Medicine (DGesGM): ESC Guidelines on the management of cardiovascular diseases during pregnancy: the Task Force on the Management of Cardiovascular Diseases During Pregnancy of the European Society of Cardiology (ESC). Eur Heart J 32 (24):3147–3197, 2011. doi: 10.1093/eurheartj/ehr218

Fisiopatologia das cardiopatias na gestação

A gestação estressa o sistema cardiovascular, muitas vezes piorando doenças cardíacas conhecidas; doenças cardíacas leves podem se tornar evidentes pela primeira vez durante a gravidez.

Os estressores incluem diminuição da hemoglobina e aumento do volume sanguíneo, do volume sistólico e, por fim, da frequência cardíaca. O débito cardíaco aumenta 30 a 50%. Essas mudanças se tornam máximas entre 28 e 34 semanas de gestação.

Durante o trabalho de parto, o débito cardíaco aumenta aproximadamente 20% a cada contração uterina; outros estressores incluem o esforço violento durante a 2ª fase de trabalho de parto e o aumento do débito venoso que retorna ao coração, proveniente do útero que se contrai. Os estressores cardiovasculares não voltam aos níveis pré-gestacionais até várias semanas depois do parto.

Sinais e sintomas das cardiopatias na gestação

Os achados que se assemelham à insuficiência cardíaca (p. ex., dispneia moderada, sopros sistólicos, distensão jugular, taquicardia, edema dependente, cardiomegalia leve vista em radiografia de tórax) tipicamente ocorrem durante a gestação normal ou podem ser resultado de uma cardiopatia. Sopros diastólicos ou pré-sistólicos são mais específicos de cardiopatia.

A insuficiência cardíaca pode causar trabalho de parto prematuro ou arritmias. O risco de morte materna ou fetal se correlaciona com a classificação funcional da New York Heart Association (NHYA), que se baseia na quantidade de atividade física necessária para causar sintomas de insuficiência cardíaca.

O risco só é maior se os sintomas

  • Ocorrem durante esforço leve (classe III da NYHA)

  • Ocorrem com mínimo ou nenhum esforço (classe IV da NYHA)

Diagnóstico de cardiopatias na gestação

  • História e exame físico

  • Em geral, ecocardiografia

O diagnóstico de doença cardíaca durante a gestação normalmente baseia-se na avaliação clínica e ecocardiografia.

Como a genética pode contribuir para o risco de cardiopatias, aconselhamento genético e ecocardiograma fetal devem ser oferecidos a mulheres com doença cardíaca congênita.

Tratamento das doenças cardíacas na gestação

  • Evitar varfarina, inibidores da enzima conversora da angiotensina (ECA), bloqueadores do receptor de angiotensina II (BRAs), antagonistas da aldosterona, diuréticos tiazídicos e certos antiarrítmicos (p. ex., amiodarona)

  • Para pacientes classe III ou IV pela escala da New York Heart Association (NYHA), restrição de atividades e possível repouso após 20 semanas

  • A maioria dos outros tratamentos usuais para insuficiência cardíaca e arritmias

Requerem-se visitas pré-natais frequentes, muito descanso, evitar ganho de peso excessivo e estresse e tratamento da anemia. Um anestesista familiarizado com cardiopatias na gestação deve estar presente no trabalho de parto e, idealmente, deve ser consultado no período pré-natal. Durante este, dor e ansiedade são tratadas agressivamente para minimizar a taquicardia. As mulheres são monitoradas de perto imediatamente após o parto e são seguidas durante várias semanas pós-parto por um cardiologista.

Antes de mulheres com classe funcional III ou IV da NYHA conceberem, a cardiopatia deve ser tratado de modo adequado e, se indicado (p. ex., se em decorrência de distúrbios valvar), tratado cirurgicamente. Deve-se aconselhar as mulheres com insuficiência cardíaca classe III ou IV ou outra doença de alto risco (listadas acima) sobre aborto terapêutico precoce.

Algumas mulheres com cardiopatia e função cardíaca deficiente podem exigir digoxina, 0,25 mg por via oral, uma vez ao dia mais repouso no leito ou atividade limitada, a partir da 20ª semana de gestação. Glicosídios cardíacos (p. ex., digoxina, digitoxina) cruzam a placenta, mas os neonatos (e crianças) são relativamente resistentes à sua toxicidade. Inibidores da ECA e BRAs são contraindicados porque podem causar dano renal fetal. Os antagonistas da aldosterona (espironolactona, eplerenona) devem ser evitados porque podem causar a feminização de um feto do sexo masculino. Outros tratamentos para insuficiência cardíaca (p. ex., diuréticos não tiazídicos, nitratos, agentes inotrópicos) podem ser continuados durante a gestação, dependendo da gravidade da doença e do risco fetal, conforme determinado por cardiologista e perinatalogista.

Arritmias

A fibrilação atrial pode acompanhar cardiomiopatia ou cardiopatias valvares. O controle da frequência cardíaca costuma ser semelhante àquele nas pacientes não gestantes, com betabloqueadores, bloqueadores de canais de cálcio ou digoxina (ver Medicamentos para arritmias). Certos antiarrítmicos (como a amiodarona) devem ser evitados. Se as pacientes tiverem um quadro inicial de fibrilação atrial com instabilidade hemodinâmica ou se os medicamentos não controlarem a frequência ventricular, a cardioversão pode ser utilizada para restabelecer o ritmo sinusal.

A anticoagulação pode ser necessária, visto que a hipercoagulabilidade relativa durante a gestação torna a formação de trombos atriais mais provável (e a subsequente embolização sistêmica ou pulmonar). Heparina padrão ou de baixo peso molecular é utilizada. Embora nem a heparina padrão nem aquela de baixo peso molecular cruzem a placenta, esta última tem menor risco de causar trombocitopenia. A varfarina cruza a placenta e pode provocar anormalidades fetais, (ver tabela Alguns fármacos com efeitos adversos durante a gestação), em particular durante o 1º trimestre. Mas o risco é dependente da dose, e a incidência é muito baixa se a dose é ≤ 5 mg por dia. A varfarina utilizada durante o último mês de gestação também apresenta riscos. A rápida reversão dos efeitos anticoagulantes da varfarina pode ser difícil de conseguir e isso pode ser necessário em razão da hemorragia intracraniana fetal/neonatal que resulta do trauma de parto ou da hemorragia materna (p. ex., resultante de trauma ou cesárea de emergência).

O controle da taquicardia supraventricular ou taquicardia ventricular aguda é igual ao tratamento para pacientes não gestantes.

Profilaxia da endocardite

Para pacientes gestantes com doença cardíaca estrutural, as indicações e o uso da profilaxia da endocardite para eventos não obstétricos são iguais àqueles para não gestantes. As diretrizes da American Heart Association não recomendam profilaxia para endocardite em partos vaginais e cesáreas porque a taxa de bacteremia é baixa. Entretanto, em pacientes de alto risco (p. ex., aqueles com materiais cardíacos protéticos, história de endocardite, lesão cianótica congênita não reparada ou transplante de coração com valvulopatia), geralmente considera-se a profilaxia quando as membranas se rompem, embora nenhuma evidência indique algum benefício.

Se as pacientes com doença cardíaca estrutural desenvolvem corioamnionite ou outra infecção (p. ex., pielonefrite) que exige internação, os antibióticos utilizados para tratar a infecção devem abranger os patógenos mais susceptíveis de causar endocardite.

Pontos-chave

  • A gestação pode não ser aconselhável para mulheres com certas cardiopatias de alto risco (p. ex., hipertensão pulmonar, coarctação da aorta se não corrigida ou acompanhada por aneurisma, síndrome de Marfan com diâmetro da raiz da aorta de > 4,5 cm, estenose aórtica grave sintomática, estenose mitral grave, valva aórtica bicúspide com aorta ascendente > 50 mm, ventrículo único com função sistólica prejudicada, cardiomiopatia, insuficiência cardíaca classe III ou IV da NYHA).

  • Tratar a insuficiência cardíaca e arritmias durante a gestação da mesma maneira como para pacientes não grávidas, exceto evitar certos medicamentos (p. ex., varfarina, inibidores da ECA, BRAs, antagonistas da aldosterona, diuréticos tiazídicos, alguns antiarrítmicos como amiodarona).

  • Tratar a maioria das pacientes grávidas que têm fibrilação atrial com heparina padrão ou de baixo peso molecular.

  • As indicações para a profilaxia da endocardite em pacientes grávidas com doença cardíaca estrutural são as mesmas que para outras pacientes.

Estenose e insuficiência valvulares na gestação

Durante a gestação, a estenose valvular e a regurgitação (insuficiência) afetam mais frequentemente as valvas mitral e aórtica. Estenose mitral é a doença valvular mais comum durante a gestação.

A gestação amplia os sopros cardíacos das estenoses mitral e aórtica, mas diminui os das regurgitações dessas mesmas valvas. Durante a gestação, regurgitações leves das valvas mitral ou aórtica normalmente são fáceis de tolerar; a estenose é mais difícil de tolerar e predispõe a complicações maternas e fetais. A estenose mitral é especialmente perigosa; a taquicardia, o volume sanguíneo aumentado e o aumento do débito cardíaco durante a gestação interagem com esse distúrbio para aumentar a pressão capilar pulmonar, causando assim edema pulmonar. A fibrilação atrial também é comum.

Tratamento

  • Para estenose mitral, prevenção da taquicardia, tratamento do edema pulmonar e fibrilação atrial e, às vezes, valvotomia

  • Para estenose aórtica, correção cirúrgica antes da gestação se possível

Idealmente, os distúrbios valvares são diagnosticados e tratados clinicamente antes da concepção; a correção cirúrgica é recomendada com frequência para distúrbios graves. Antibióticos profiláticos são necessários em certas situações (p. ex., profilaxia para endocardite).

Estenose mitral

As pacientes devem ser observadas de perto ao longo de toda a gestação, pois a estenose mitral pode se tornar mais grave rapidamente. Se for preciso, a valvotomia é relativamente segura durante a gestação; entretanto, a cirurgia de coração aberto aumenta o risco fetal. Taquicardia deve ser evitada de tal modo que o fluxo diastólico através da valva mitral estenótica possa ser maximizado.

Se ocorrer edema pulmonar, diuréticos de alça pode ser utilizados.

Se ocorrer fibrilação atrial, anticoagulação e controle da frequência cardíaca são necessários. O controle da frequência cardíaca geralmente é semelhante àquele em pacientes não gestantes e envolve betabloqueadores, bloqueadores de canais de cálcio ou digoxina (ver Medicamentos para arritmias).

Durante o trabalho de parto, anestesia de condução (p. ex., anestesia epidural lenta) normalmente é preferida.

Estenose aórtica

Se possível, a estenose aórtica deve ser corrigida antes da gestação porque a reparação cirúrgica durante a gestação tem mais riscos e valvuloplastia por catéter não é muito eficaz.

Durante o trabalho de parto, anestesia local ou, se necessária, anestesia geral são preferidas. A anestesia de condução diminui a pressão de enchimento (pré-carga) que já pode estar diminuída pela presença de estenose aórtica.

O esforço, que pode reduzir subitamente as pressões de enchimento e prejudicar o débito cardíaco, deve ser desencorajado durante a 2ª fase do trabalho de parto; o parto vaginal operatório é preferível. Realiza-se cesárea se indicada por razões obstétricas.

Outros cardiopatias

Prolapso da valva mitral

Ocorre prolapso da valva mitral com mais frequência em mulheres mais jovens e tende a ser familiar. O prolapso da valva mitral normalmente é uma anormalidade isolada que não tem consequências clínicas; mas as pacientes podem ter algum grau de regurgitação mitral. Raramente, o prolapso da válvula mitral ocorre com a síndrome de Marfan ou com um defeito do septo atrial.

Mulheres com prolapso da valva mitral e regurgitação mitral resultante em geral toleram bem a gestação. O aumento relativo do diâmetro ventricular durante a gestação normal reduz a discrepância entre a valva mitral desproporcionalmente grande e o ventrículo.

Indicam-se betabloqueadores para arritmias recorrentes. Raramente, trombos e êmbolos sistêmicos (por causa de fibrilação atrial concomitante) se desenvolvem e requerem anticoagulação.

Doenças cardíacas congênitas

Para a maioria das pacientes assintomáticas, o risco não está aumentado durante a gestação. No entanto, as pacientes com a síndrome de Eisenmenger (agora rara) e aquelas com hipertensão pulmonar primária, ou talvez estenose pulmonar isolada, estão predispostas, por motivos desconhecidos, à morte súbita durante o trabalho de parto, no período pós-parto (as 6 semanas após o parto) ou depois de abortos com > 20 semanas de gestação. Assim, a gestação é desaconselhada nesses casos. Se essas pacientes engravidarem, elas devem ser monitoradas atentamente durante todo o parto com catéter na artéria pulmonar e/ou acesso arterial.

Para pacientes com derivações intracardíacos, a meta é prevenir o shunt direita-esquerda pela manutenção da resistência vascular periférica, minimizando a resistência vascular pulmonar.

As pacientes com síndrome de Marfan estão em risco maior de dissecção aórtica e ruptura de aneurismas aórticos durante a gestação. São necessários repouso no leito, betabloqueadores, evitar manobras de Valsalva e medição do diâmetro aórtico com ecocardiografia.

Cardiomiopatia periparto

A insuficiência cardíaca sem causa identificável (p. ex., infarto do miocárdio, distúrbio valvar) pode se desenvolver entre o último mês de gestação até o 6º mês pós-parto em pacientes sem doença cardíaca prévia (1). Os fatores de risco incluem

  • Multiparidade

  • Idade ≥ 30

  • Gestação multifetal

  • Pré-eclâmpsia

A recorrência é provável em gestações subsequentes, em particular nas pacientes com disfunção cardíaca residual. O risco de morte em uma gestação subsequente pode ser de até 50%; portanto, não se recomendam novas gestações (2).

O tratamento é o mesmo que para insuficiência cardíaca. Os inibidores da enzima conversora da angiotensina (ECA) e a aldosterona são relativamente contraindicados, mas podem ser utilizados quando o benefício esperado excede claramente os riscos potenciais.

Referência geral

  1. 1. Sliwa K, Hilfiker-Kleiner D, Petrie MC, et al: Current state of knowledge on aetiology, diagnosis, management, and therapy of peripartum cardiomyopathy: A position statement from the Heart Failure Association of the European Society of Cardiology Working Group on peripartum cardiomyopathy. Eur J Heart Fail 12 (8):767–778, 2010. doi: 10.1093/eurjhf/hfq120

  2. 2. Elkayam U: Risk of subsequent pregnancy in women with a history of peripartum cardiomyopathy. J Am Coll Cardiol 64(15):1629-1636, 2014. doi:10.1016/j.jacc.2014.07.961

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