Visão geral do trauma abdominal

PorPhilbert Yuan Van, MD, US Army Reserve
Revisado/Corrigido: jun. 2023
Visão Educação para o paciente

O abdome pode ser lesionado por vários tipos de trauma; a lesão pode ser confinada ao abdome ou ser acompanhada de trauma grave, multissistêmico. A natureza e a gravidade das lesões abdominais variam muito de acordo com o mecanismo e as forças envolvidas, portanto generalizações sobre mortalidade e necessidade de intervenção cirúrgica tendem a ser enganosas.

As lesões costumam ser classificadas pelo tipo de estrutura danificada:

  • Parede abdominal

  • Órgão sólido (fígado, baço, pâncreas, rins)

  • Víscera oca (estômago, intestino delgado, colo, ureteres, bexiga)

  • Vascularidade

Algumas lesões específicas decorrentes de trauma abdominal são discutidas em outras partes, incluindo aquelas do fígado, baço e trato geniturinário.

(Ver também Abordagem ao paciente com trauma.)

Etiologia do trauma abdominal

Traumas abdominais também são tipicamente categorizados pelo mecanismo da lesão:

  • Contuso

  • Penetrante

Trauma fechado pode estar relacionado com um golpe direto (p. ex., chute), impacto de algum objeto (p. ex., queda sobre o guidão da bicicleta) ou desaceleração repentina (p. ex., cair do alto, acidente de trânsito). O baço é o órgão mais comumente afetado, seguido do fígado e das vísceras ocas (tipicamente o intestino delgado).

Lesões penetrantes podem ou não perfurar o peritônio e, se perfurarem, podem não afetar nenhum órgão. É menos provável que as lesões por arma branca danifiquem as estruturas intra-abdominais do que lesões por arma de fogo; nos dois casos, qualquer estrutura pode ser comprometida. Também deve-se avaliar o trauma penetrante no tórax abaixo do quarto espaço intercostal (ou linha mamilar) como um potencial ferimento abdominal por causa da localização dos órgãos abdominais no interior do tórax durante o ciclo respiratório.

Classificação

Foram criadas escalas de lesão que classificam a gravidade da lesão nos órgãos de grau 1 (mínima) a grau 5 ou 6 (maciça); a mortalidade e necessidade de correção cirúrgica aumentam à medida que o grau da lesão aumenta. Há escalas para o fígado (ver tabela Graus da lesão hepática), baço (ver tabela Graus da lesão esplênica) e rins (ver Classificação das lesões renais).

Lesões associadas

Lesão fechada ou penetrante que atinge as estruturas intra-abdominais também pode danificar a coluna, arcos costais e/ou pelve. Pacientes que sofreram desaceleração importante muitas vezes têm lesões em outras partes do corpo, incluindo na aorta torácica.

Fisiopatologia do trauma abdominal

Trauma fechado ou penetrante pode lacerar ou romper as estruturas intra-abdominais. Lesão por trauma fechado pode alternativamente causar somente um hematoma em algum órgão sólido ou na parede de uma víscera oca.

Lacerações sangram imediatamente. Hemorragia por lesão de baixo grau nos órgãos sólidos, pequena laceração vascular ou laceração de víscera oca costuma ser de baixo volume, com consequências fisiológicas mínimas. Lesões mais graves podem causar hemorragia maciça com choque, acidose e coagulopatia; intervenção é necessária. A hemorragia é interna (exceto para quantidades relativamente pequenas de sangramento externo por lacerações na parede do corpo resultante de trauma penetrante). A hemorragia interna pode ser intraperitoneal ou retroperitoneal.

A laceração ou ruptura de uma víscera oca permite que o conteúdo gástrico, intestinal ou vesical entre na cavidade peritoneal causando peritonite.

Complicações

As consequências tardias da lesão abdominal incluem

  • Ruptura de hematoma

  • Empiemas epidural e subdural

  • Obstrução intestinal ou do íleo

  • Extravasamento biliar e/ou biloma

  • Síndrome compartimental abdominal

Abcesso, obstrução intestinal, síndrome compartimental no abdome e hérnia incisional tardia também podem ser complicações do tratamento.

Os hematomas costumam reabsorver espontaneamente em dias a meses, dependendo do tamanho e da localização. Hematomas esplênicos e, com menos frequência, hematomas hepáticos podem romper-se, tipicamente nos primeiros dias após a lesão (embora alguma vezes até meses mais tarde), às vezes causando hemorragia tardia significativa. Algumas vezes os hematomas na parede intestinal são perfurados, normalmente em 48 a 72 horas após a lesão, liberando conteúdo intestinal e causando peritonite, mas sem causar hemorragia significativa. Hematomas na parede intestinal raramente causam estenose intestinal, tipicamente meses a anos mais tarde, embora existam relatos de casos de obstrução intestinal até 2 semanas após um trauma fechado.

Abcesso intra-abdominal costuma ser o resultado da perfuração não detectada de alguma víscera oca, mas pode ser uma complicação da laparotomia. O índice de formação de abcessos varia de 0% após laparotomias não terapêuticas a cerca de 10% após laparotomias terapêuticas, embora essa taxa possa ser de até 50% após uma cirurgia corretiva de lacerações hepáticas graves.

Raramente ocorre obstrução intestinal semanas a anos após uma lesão decorrente de hematoma na parede intestinal ou de aderências causadas por laceração da serosa intestinal ou do mesentério. Mais comumente, a obstrução intestinal é uma complicação da laparotomia exploratória. Mesmo laparotomias não terapêuticas às vezes causam aderências, que ocorrem em 0 a 2% desses casos.

O extravasamento biliar e/ou biloma é uma complicação rara da lesão hepática e, ainda menos comumente, da lesão do duto biliar. A bile pode ser excretada da própria superfície de uma lesão hepática ou de um duto biliar lesado. Ela pode disseminar-se por toda a cavidade peritoneal ou ser delimitada formando uma coleção diferenciada, ou biloma. O extravasamento de bile pode resultar em dor, resposta inflamatória sistêmica e/ou hiperbilirrubinemia.

Síndrome compartimental abdominal

A síndrome compartimental abdominal é análoga à síndrome compartimental nos membros após lesão ortopédica. Na síndrome compartimental abdominal o extravasamento capilar mesentérico e intestinal [p. ex., por choque, procedimento cirúrgico abdominal prolongado, lesão por isquemia-reperfusão sistêmica ou síndrome da resposta inflamatória sistêmica (SRIS)] provocando edema tecidual intra-abdominal. Embora não haja mais espaço para expansão na cavidade peritoneal do que nos membros, o edema não verificado e, ocasionalmente a ascite, em última análise aumenta a pressão intra-abdominal (definida como > 20 mmHg), causando dor, disfunção e isquemia nos órgãos. A isquemia intestinal resultante agrava o extravasamento vascular, e isso gera um círculo vicioso. Outros órgãos afetados são

  • Rins (causando insuficiência renal)

  • Pulmões (o aumento da pressão abdominal pode interferir na respiração, causando hipoxemia e hipercapnia)

  • Sistema cardiovascular (o aumento da pressão abdominal diminui o retorno venoso dos membros inferiores causando hipotensão)

  • Sistema nervoso central (aumento da pressão intracraniana, possivelmente decorrente do aumento da pressão venosa central impedindo a drenagem venosa adequada do cérebro, diminuindo a perfusão cerebral, o que pode agravar as lesões intracranianas)

A síndrome compartimental abdominal tipicamente ocorre em condições em que há tanto extravasamento vascular como grande quantidade de líquidos de reposição volêmica (normalmente > 10 L). Assim, muitas vezes ela ocorre após a laparotomia por lesão abdominal grave acompanhada de choque, mas pode ocorrer em condições que não afetam primariamente o abdome, como queimaduras graves, sepse e pancreatite. Depois que a disfunção de múltiplos órgãos se desenvolve, a única maneira de prevenir a mortalidade é descomprimir o conteúdo abdominal, tipicamente por laparotomia. Paracentese de grande volume pode ser eficaz quando há ascite volumosa.

Sinais e sintomas do trauma abdominal

Costuma haver dor abdominal; mas a dor geralmente é leve e, portanto, facilmente obscurecida por outras lesões mais dolorosas (p. ex., fraturas) e por um sistema sensorial alterado (p. ex., por causa de ferimentos na cabeça, intoxicação, choque). A dor da lesão esplênica algumas vezes se irradia para o ombro esquerdo. A dor de uma pequena perfuração intestinal costuma ser mínima no início, mas piora de forma constante ao longo das primeiras horas. Pacientes com lesão renal podem perceber hematúria.

Ao exame, os sinais vitais podem revelar indícios de hipovolemia (p. ex., taquicardia, pressão de pulso estreita) ou choque (p. ex., urina escura, diaforese, alteração sensorial, oligúria, hipotensão).

Inspeção

Lesões penetrantes, por definição, causam ruptura da pele, mas os médicos devem se certificar de inspecionar o dorso, região glútea, períneo, flanco e parte inferior do tórax além do abdome, particularmente quando há lesão por arma de fogo ou explosivos. Lesões cutâneas costumam ser pequenas, com sangramento mínimo, embora ocasionalmente as lesões sejam extensas, algumas vezes acompanhadas de evisceração.

Dicas e conselhos

  • Nem todas as lesões abdominais penetrantes se originam de feridas na parede abdominal; suspeitar de lesões com orifício de entrada no dorso, região glútea, flanco, períneo e parte inferior do tórax.

Trauma fechado pode causar equimose (p. ex., a equimose transversa linear também denominada de sinal do cinto de segurança), mas essa descoberta tem baixa sensibilidade e especificidade. Distensão abdominal após um trauma geralmente indica hemorragia grave (2 a 3 L), mas a distensão pode não ser visível mesmo em pacientes que perderam várias unidades de sangue.

Palpação

Muitas vezes há dor abdominal. Esse sinal não é muito fidedigno porque as contusões na parede abdominal podem ser dolorosas e muitos pacientes com lesão intra-abdominal apresentam respostas equívocas ao exame se estiverem distraídos por outras lesões ou tiverem alterações sensoriais, ou ainda se as lesões forem principalmente retroperitoneais. Embora não muito sensíveis, quando detectados, os sinais peritoneais (p. ex., defesa, rebote) sugerem fortemente a presença intraperitoneal de sangue e/ou conteúdo intestinal.

O toque retal pode revelar sangue macroscópico decorrente de lesão penetrante no colo, e pode haver sangue no meato uretral ou hematoma perineal por lesão do trato geniturinário. Embora esses achados sejam bem específicos, não são muito sensíveis.

Diagnóstico do trauma abdominal

  • Avaliação clínica

  • Muitas vezes, TC ou ultrassonografia

Como para todos os pacientes com trauma importante, os médicos fazem uma avaliação completa e organizada do trauma simultânea à reanimação (ver Abordagem ao paciente com trauma). Embora muitas lesões intra-abdominais cicatrizam sem nenhum tratamento específico, o principal objetivo do médico é identificar as lesões que exigem intervenção.

Dicas e conselhos

  • Como muitas lesões intra-abdominais cicatrizam sem nenhum tratamento específico, o principal objetivo do médico é identificar as lesões que exigem intervenção.

Após a avaliação clínica, alguns pacientes claramente exigem laparotomia exploratória em vez de exames, incluindo aqueles com

  • Peritonite

  • Instabilidade hemodinâmica por trauma abdominal penetrante

  • Ferimentos por arma de fogo (a maioria)

  • Evisceração

Por outro lado, alguns pacientes têm risco muito baixo e podem receber alta ou ficar em observação durante curto período de tempo sem nenhum outro exame além da inspeção visual da urina para verificar se há sangramento macroscópico. Esses pacientes geralmente têm trauma abdominal fechado e um mecanismo menor de lesão, sensório normal e nenhuma sensibilidade ou sinal peritoneal; eles devem ser instruídos a retornar imediatamente se a dor piorar. Pacientes com ferimentos na face anterior do abdome por arma branca sem penetração na fáscia também podem ficar em observação por um curto período de tempo e receberem alta (1).

Entretanto, a maioria dos pacientes não tem essas manifestações positivas ou negativas inequívocas exigindo, portanto, exames complementares para avaliar a lesão intra-abdominal. As opções de exames incluem

  • Exames de imagem (ultrassonografia, TC)

  • Procedimentos (exploração da lesão, lavado peritoneal diagnóstico)

Além disso, pacientes geralmente devem ser submetidos a radiografias para procurar ar livre sob o diafragma (indicando perfuração de víscera oca) e ver se uma das cúpulas diafragmáticas encontra-se elevada (sugerindo ruptura do diafragma). Radiografia da pelve é feita nos pacientes com dor pélvica ou desaceleração importante e um exame clínico duvidoso.

Testes laboratoriais são secundários. A urinálise para detectar hematúria (macro ou microscópica) é útil e, para os pacientes com lesões aparentemente graves, o hemograma completo é valioso para estabelecer o hematócrito inicial. Os níveis de enzimas pancreáticas e hepáticas não são suficientemente sensíveis nem específicos para as lesões significativas dos órgãos para serem recomendados. O banco de sangue deve realizar uma tipagem sanguínea e pesquisa de anticorpos caso transfusões de sangue sejam possíveis; a tipagem e prova cruzada é realizada se a transfusão for muito provável. Níveis séricos de lactato ou o cálculo do deficit de bases (por gasometria arterial) podem ajudar a identificar choque oculto.

O método escolhido para detectar as lesões intra-abdominais varia de acordo com o mecanismo da lesão e exame clínico.

Trauma abdominal penetrante

Não se deve introduzir sondas às cegas nas lesões com algum instrumento contundente (p. ex., cotonete, ponta do dedo). Se o peritôneo foi rompido, essa sondagem pode introduzir infecção ou causar maiores danos.

É possível fazer a exploração local das lesões por arma branca (incluindo empalamento) no abdome anterior (entre as 2 linhas axilares anteriores) em pacientes hemodinamicamente estáveis sem sinais de irritação peritoneal. Tipicamente, administra-se anestesia local e a lesão é aberta o suficiente para permitir a visualização completa de todo o trato. Se a fáscia anterior tiver sido penetrada, os pacientes são encaminhados para exames clínicos seriados; a laparotomia exploratória é indicada se houver sinais de irritação peritoneal ou instabilidade hemodinâmica. Se a fáscia não estiver rompida, a lesão é limpa, suturada e o paciente recebe alta. Alternativamente, alguns centros fazem TC, ou menos comumente, lavado peritoneal diagnóstico (LPD), para avaliar os pacientes com penetração da fáscia abdominal. Recomenda-se TC para lesões por arma branca no flanco (entre as linhas axilares anterior e posterior) ou no dorso (entre as 2 linhas axilares posteriores) porque as lesões nas estruturas retroperitoneais subjacentes nessas regiões podem não ser percebidas ao fazer exames abdominais seriados e/ou LDP.

Para lesões por arma de fogo, a maioria dos médicos realiza laparotomia exploratória, a menos que a lesão seja abrasiva ou tangencial e não houver peritonite nem hipotensão. Entretanto, alguns centros que adotam o tratamento conservador para determinados pacientes com lesão somente em órgão sólido (normalmente lesão hepática) fazem TC nos pacientes estáveis com lesão por arma de fogo. Normalmente, não se faz a exploração no local da lesão para ferimentos por arma de fogo.

Trauma abdominal fechado

A maioria dos pacientes com múltiplos traumas e lesões que os distraem e/ou alteração sensorial deve ser submetida ao exame do abdome, bem como pacientes com achados ao exame. Normalmente, os médicos utilizam ultrassonografia ou TC, ou, às vezes, ambas.

A ultrassonografia [algumas vezes chamada avaliação por ultrassonografia abdominal direcionada no trauma (USADT)] pode ser feita durante a avaliação inicial, sem mover o paciente para a sala de radiologia. A USADT possibilita obter imagens do pericárdio, dos quadrantes superiores direito e esquerdo e da pelve; seu principal objetivo é encontrar derrame pericárdico ou líquido livre na cavidade. A USADT ampliada (USADT-A) adiciona imagens do tórax para detectar pneumotórax. A ultrassonografia não expõe o paciente à radiação, e tem sensibilidade para detectar grandes quantidades de líquido abdominal, mas não identifica bem lesões as específicas em órgãos sólidos, não detecta bem a perfuração de víscera, sendo limitada para os pacientes com obesidade e para aqueles com ar subcutâneo (p. ex., decorrente de pneumotórax).

TC é tipicamente feita com contraste venoso, mas não oral; esse exame é muito sensível para detectar líquido livre e lesões em órgãos sólidos, mas menos sensível para pequenas perfurações viscerais (embora melhor do que a ultrassonografia) e pode detectar simultaneamente lesão na coluna ou pelve. Entretanto, a TC expõe o paciente à radiação, o que é especialmente preocupante em crianças e pacientes que podem precisar repetir os exames (p. ex., pacientes estáveis com pequenas quantidades de líquido livre) e requer que o paciente seja transportado para longe da área de reanimação.

A escolha entre a ultrassonografia e a TC baseia-se no estado do paciente. Se for necessário fazer uma TC no paciente para avaliar outra região do corpo (p. ex., coluna cervical ou pelve), TC provavelmente será uma escolha razoável para avaliar o abdome. Alguns médicos fazem a avaliação por USADT durante a fase de reanimação e a seguir uma laparotomia se for observada grande quantidade de líquido (em pacientes hipotensos). Se resultados da avaliação por USADT forem negativos ou fracamente positivos, os médicos fazem uma TC se ainda houver preocupação com o abdome após o paciente ter sido estabilizado. As razões dessa preocupação podem ser dor abdominal mais intensa ou previsão de não poder fazer o acompanhamento clínico do paciente (p. ex., pacientes que exigem sedação profunda ou que serão submetidos a procedimentos cirúrgicos demorados).

No lavado peritoneal diagnóstico (LPD), um catéter de diálise peritoneal é inserido na parede abdominal perto da cicatriz umbilical nas cavidades pélvica e/ou peritoneal. A aspiração de sangue macroscópico é considerada um sinal positivo de lesão abdominal. Se não houver aspiração de sangue, 1 L de cristaloide é introduzido na cavidade e depois drenado. A identificação de > 100.000 eritrócitos/mL (100 x 109/L) do líquido drenado é muito sensível para lesão abdominal. No entanto, a LPD foi predominantemente substituída pela avaliação por USADT e TC. A LPD tem baixa especificidade, identifica muitas lesões que não exigem correção cirúrgica e, portanto, resulta em uma alta taxa de laparotomia branca. A LPD também não detecta lesão retroperitoneal. A LPD pode ser útil em situações clínicas limitadas, por exemplo, quando existe líquido livre na pelve na ausência de lesão em órgão sólido ou quando o paciente está hipotenso com resultado de uma avaliação USADT duvidosa.

Reconhecimento das complicações do trauma abdominal

Os pacientes com piora súbita da dor abdominal nos dias após uma lesão devem suscitar suspeita de ruptura de hematoma em órgão sólido ou perfuração tardia de víscera oca, especialmente se apresentarem taquicardia e/ou hipotensão. A piora constante da dor no primeiro dia sugere perfuração de víscera oca ou, se depois de vários dias, formação de abscessos, principalmente quando acompanhada de febre e leucocitose. Nos dois casos, imagens com ultrassonografia ou TC é geralmente feitas em pacientes estáveis, seguido de correção cirúrgica.

Após trauma abdominal grave, deve-se suspeitar de síndrome compartimental abdominal nos pacientes com diminuição do débito urinário, insuficiência respiratória e/ou hipotensão, principalmente se houver tensão ou distensão abdominal (mas os achados físicos não são muito sensíveis). Como essas manifestações também podem ser sinais de descompensação decorrente de lesões subjacentes, é necessário um alto grau de suspeita para os pacientes de risco. O diagnóstico requer a aferição da pressão intra-abdominal, normalmente com um transdutor de pressão ligado ao catéter vesical; valores > 20 mmHg são diagnósticos de hipertensão intra-abdominal e são preocupantes. Quando os pacientes com esses valores também têm sinais de disfunção orgânica (p. ex., hipotensão, hipóxia e/ou hipercapnia, diminuição do débito urinário, aumento da pressão intracraniana), é feita descompressão cirúrgica. Normalmente, o abdome é mantido aberto com a ferida coberta por curativo embalado a vácuo ou outro dispositivo temporário.

Referência sobre diagnóstico

  1. Como JJ, Bokhari F, Chiu WC, et al: Practice management guidelines for selective nonoperative management of penetrating abdominal trauma. J Trauma 68(3):721-733, 2010. doi: 10.1097/TA.0b013e3181cf7d07

Tratamento do trauma abdominal

  • Às vezes, laparotomia para controle da hemorragia, reparo do órgão, ou ambos

  • Raramente embolização arterial

Os pacientes que parecem estar em choque hemorrágico devem receber reposição volêmica para controlar os danos até a hemorragia ser controlada. A reanimação para controle de danos utiliza hemoderivados em uma proporção aproximada de 1:1:1 de plasma, plaquetas e eritrócitos concentrados para minimizar a utilização de soluções cristaloides (1). Uma pressão arterial sistólica alvo de > 100 mmHg durante a reanimação enquanto se aguarda o tratamento definitivo da hemorragia é ideal. O líquido cristalino intravenoso pode ser administrado como último recurso se não houver hemoderivados disponíveis. Com a falta de fatores de coagulação, incapacidade de transportar oxigênio e pH baixo, líquidos cristaloides intravenosos contribuem para acidose e coagulopatia em pacientes com choque hemorrágico.

Alguns pacientes hemodinamicamente instáveis requerem laparotomia exploratória imediata conforme descrito anteriormente. Para a maioria dos pacientes que não exige cirurgia imediata, mas nos quais foram identificadas lesões intra-abdominais durante o exame de imagem, as opções terapêuticas são a observação, a embolização angiográfica e, com menos frequência, a intervenção cirúrgica. Antibióticos profiláticos não são indicados quando os pacientes recebem tratamento não cirúrgico. Entretanto, os antibióticos costumam ser administrados antes da exploração cirúrgica.

Observação

Observação (iniciando na unidade de terapia intensiva) costuma ser apropriada para os pacientes hemodinamicamente estáveis com lesão de órgão sólido, muitas das quais cicatrizam espontaneamente. Pacientes com líquido livre na cavidade observado por TC, mas sem nenhuma lesão específica identificada em algum órgão também podem ficar em observação, desde que não tenham sinais de irritação peritoneal. No entanto, o líquido livre na cavidade sem evidências de lesão de órgão sólido também é o achado radiográfico mais frequente nas lesões de víscera oca, embora esse achado tenha baixa especificidade. Como a observação não é adequada nos casos de perfuração de víscera oca (os pacientes geralmente evoluem para sepse por peritonite), os médicos devem adotar um limiar mais baixo para a exploração cirúrgica quando os pacientes com líquido livre na cavidade pioram ou não conseguem melhorar durante o período de observação.

Durante a observação, os pacientes são examinados várias vezes ao dia (de preferência pelo mesmo examinador), e o hemograma completo é feito, tipicamente a cada 4 a 6 horas. A avaliação procura identificar hemorragia e peritonite.

Hemorragia contínua é sugerida por

  • Piora do estado hemodinâmico

  • Necessidade significativa de transfusão contínuas (p. ex., mais de 2 a 4 unidades ao longo de um período de 12 horas)

  • Diminuição significativa do hematócrito (Hct; p. ex., > 10 a 12%)

O significado das exigências para transfusão e alterações no hematócrito de certa forma dependem do órgão lesionado e de outras lesões associadas (isto é, que também podem ter causado a perda de sangue), bem como das reservas fisiológicas do paciente. No entanto, deve-se considerar em pacientes com suspeita de hemorragia contínua significativa angiografia com embolização ou laparotomia imediata.

A peritonite requer investigação adicional por lavagem peritoneal diagnóstica (LPD), TC ou, em alguns casos, laparotomia exploratória.

Os pacientes que permanecem estáveis geralmente são transferidos para o quarto ou a enfermaria após 12 a 48 horas, dependendo da gravidade da lesão abdominal e de outras lesões. Sua atividade e dieta avança como tolerada. Tipicamente, os pacientes podem receber alta depois de 2 a 3 dias. Eles são instruídos a restringir as atividades por um período mínimo de 6 a 8 semanas.

Não está claro quais pacientes assintomáticos precisam ser submetidos a exames de imagem antes que possam retomar todas as suas atividades, especialmente quando há probabilidade de que farão trabalhos pesados, esportes de contato ou trauma no tronco. Pacientes com lesões de grau alto têm maior risco de complicações pós-lesionais e devem ter o menor limiar de repetição dos exames de imagem.

Laparotomia

Faz-se laparotomia por causa da natureza inicial da lesão e do estado clínico do paciente (p. ex., instabilidade hemodinâmica) ou por causa de descompensação clínica subsequente. A maioria dos pacientes pode ser submetido a um único procedimento durante o qual controla-se a hemorragia reparam-se as lesões.

Entretanto, os resultados para os pacientes com lesões intra-abdominais extensas submetidos a um procedimento cirúrgico inicial prolongado tendem a ser piores, especialmente quando tem outras lesões graves, estiveram em estado de choque por um período prolongado, ou ambos. Quanto mais extenso e demorado o procedimento cirúrgico inicial, maior a probabilidade de que esses pacientes desenvolvam a combinação altamente letal de acidose, coagulopatia e hipotermia com subsequente disfunção de múltiplos órgãos. Nesses casos, é possível reduzir a mortalidade se o cirurgião realizar inicialmente um procedimento muito mais breve (denominado cirurgia de controle de danos) no qual controlam-se a hemorragia e o extravasamento entérico (p. ex., por compressa, ligadura, derivação, sutura ou grampeamento do intestino) sem reparo definitivo e com o abdome temporariamente fechado.

Pode-se obter o fechamento temporário com um sistema fechado de sucção a vácuo, utilizando toalhas, drenos e grandes curativos biológicos oclusivos, ou utilizando um curativo comercialmente disponível por pressão abdominal negativa. Os pacientes são então estabilizados na unidade de terapia intensiva e levados para remoção dos curativos e reparo cirúrgico definitivo depois do restabelecimento de sua fisiologia normal (particularmente a correção do pH e da temperatura), tipicamente em 24 horas, ou antes, se houver agravamento clínico apesar da reanimação. Como os pacientes que exigem procedimentos de controle de danos são aqueles com as lesões mais graves, a mortalidade ainda é significativa e as complicações intra-abdominais subsequentes são comuns.

Embolização angiográfica

Algumas vezes o sangramento contínuo pode ser interrompido sem cirurgia por meio de embolização do vaso sangrante utilizando um procedimento angiográfico percutâneo (embolização angiográfica). Obtém-se a hemostasia injetando uma substância trombogênica (p. ex., gelatina em pó) ou molas metálicas no vaso sangrante. Embora não haja consenso, as indicações geralmente aceitas para embolização angiográfica são

  • Pseudoaneurisma

  • Fístula arteriovenosa

  • Lesões em órgãos sólidos (especialmente no fígado) ou fratura pélvica com sangramento grave o suficiente para exigir transfusão após a reanimação

Não se recomenda embolização angiográfica para pacientes instáveis porque o setor de radiologia não é um ambiente propício para a prestação de atendimento a pacientes em estado crítico. Além disso, deve-se desencorajar as tentativas prolongadas de embolização nos pacientes cujo sangramento exige transfusão contínua; a abordagem cirúrgica é a mais indicada. Mas com a disponibilidade cada vez maior de centros cirúrgicos híbridos (sala de operação com capacidade de realizar intervenção angiográfica), alguns pacientes instáveis talvez possam ser submetidos à angiografia e à cirurgia em uma sucessão rápida, se necessário.

Referência sobre tratamento

  1. Holcomb JB, Tilley BC, Baraniuk S, et al: Transfusion of plasma, platelets, and red blood cells in a 1:1:1 vs a 1:1:2 ratio and mortality in patients with severe trauma. JAMA 313(5):471-482, 2015. doi: 10.1001/jama.2015.12

Pontos-chave

  • As complicações das lesões abdominais podem ser agudas (p. ex., sangramento) ou tardias (p. ex., abscesso, obstrução ou íleo paralítico, ruptura tardia de hematoma).

  • O exame abdominal não indica com segurança a gravidade da lesão abdominal.

  • Se os pacientes tiverem evisceração, choque por trauma abdominal penetrante ou peritonite, fazer laparotomia exploratória sem a demora da obtenção dos exames diagnósticos.

  • A menos que haja evidências claras de que a laparotomia é indicada ou o mecanismo da lesão é menor, exames de imagem (normalmente ultrassonografia ou TC) são tipicamente necessários após trauma fechado ou penetrante.

  • Se a dor aumentar gradualmente ou os sinais clínicos indicarem deterioração, suspeitar de complicação tardia.

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