A porfiria cutânea tardia é uma porfiria hepática comparativamente comum, afetando principalmente a pele. Hepatopatia também é comum. A PCT ocorre por causa de uma deficiência hepática adquirida ou herdada da atividade de uroporfirinogênio descarboxilase, uma enzima na via biossintética do heme (ver tabela ). As porfirinas se acumulam, particularmente quando há aumento do estresse oxidativo nos hepatócitos, o que geralmente resulta de aumento do ferro hepático, mas que também pode ocorrer causa de álcool, tabagismo, estrogênios ou infecção por hepatite C ou HIV. Os sintomas incluem pele frágil e formação fácil de bolhas, principalmente nas áreas expostas ao sol. O diagnóstico se faz pela análise de porfirinas na urina e nas fezes. É importante estabelecer a distinção das porfirias cutâneas agudas (coproporfiria hereditária e porfiria variegata). O tratamento é feito por depleção de ferro por flebotomia e intensificação da excreção de porfirinas pelo tratamento com baixas doses de cloroquina ou hidroxicloroquina. A prevenção é evitar luz solar, álcool, tabagismo, estrogênios, medicamentos que contêm ferro e tratamento bem-sucedido de quaisquer infecções concomitantes por hepatite C e HIV.
(Ver também Visão geral das porfirias e Visão geral das porfirias cutâneas.)
Fisiopatologia da porfiria cutânea tarda
Porfiria cutânea tardia (PCT) resulta da deficiência hepática de uroporfirinogênio descarboxilase (UROD — ver tabela Substratos e enzimas da via biossintética do heme). As porfirinas se acumulam no fígado e são transportadas para a pele, onde causam fotossensibilidade.
Os fármacos que comumente desencadeiam a porfiria aguda (ver tabela Drug Database for Acute Porphyria ou American Porphyria Foundation drug database) não desencadeiam PCT.
Doenças hepáticas são comuns em casos de porfiria cutânea tardia e podem decorrer, em parte, de acúmulo de porfirina, infecção crônica pelo vírus da hepatite C, hemossiderose concomitante ou excesso de ingestão de álcool. A cirrose ocorre em ≤ 35% dos pacientes e o carcinoma hepatocelular, em 7 a 24% (mais comum em homens de meia-idade).
Há dois tipos principais de porfiria cutânea tardia:
Tipo 1: adquirido ou esporádico (75 a 80% dos casos)
Tipo 2: hereditária ou familiar (20 a 25% dos casos)
Há também um raro tipo 3, responsável por < 1% dos casos.
Na porfiria cutânea tardia tipo 1, a deficiência de descarboxilase se restringe ao fígado e nenhuma predisposição genética está presente. Em geral, manifesta-se na meia-idade ou mais tarde. Acredita-se que a deficiência enzimática seja adquirida em razão do aumento do estresse oxidativo nos hepatócitos que leva ao aumento da oxidação do uroporfirinogênio ou da uroporfirina, que não é um substrato para a enzima, e à formação do inibidor uroporfometileno. Estrogênio, ferro em excesso e infecção por hepatite C também aumentam esse estresse oxidativo nos hepatócitos.
Na porfiria cutânea tardia tipo 2, a deficiência de descarboxilase é herdada de forma autossômica dominante com penetrância limitada. A deficiência ocorre em todas as células, incluindo eritrócitos. Pode apresentar-se mais precocemente que o tipo 1, às vezes na infância. A própria deficiência parcial (~ 50%) na atividade UROD em pacientes heterozigotos não é suficiente para causar características bioquímicas ou clínicas da PCT; fatores adicionais são necessários para causar uma queda de > 75% na atividade UROD hepática necessária para que as características da PCT se manifestem. Os gatilhos incluem ferro hepático elevado, consumo de álcool, exposição a hidrocarbonetos halogenados e infecção pelo vírus da hepatite C ou HIV estrogênios e tabagismo. Esses fatores aumentam a oxidação de uroporfirinogênios e outros porfirinogênios para as porfirinas correspondentes e também ajudam a formar os inibidores de UROD.
A porfiria hepatoeritropoiética (PHE — ver tabela Algumas porfirias menos comuns), que apresenta deficiência profunda de UROD é muito rara e é frequentemente considerada uma forma autossômica recessiva da PCT tipo 2.
PCT tipo 3, que é muito rara, é hereditária, mas sem nenhum defeito no gene UROD; um defeito em outro gene não identificado parece ser a causa.
Os tipos 1 e 2 são as principais formas da porfiria cutânea tardia. Eles têm os mesmos precipitantes, sintomas e tratamento. A prevalência geral pode ser da ordem de 1/10.000, mas provavelmente é mais alta em pessoas expostas a hidrocarbonetos aromáticos halogenados ou outros precipitantes da doença.
Pseudoporfiria
Doença renal em estágio terminal, radiação ultravioleta (UVA) e certos medicamentos podem causar sintomas parecidos com PCT sem níveis de porfirina elevados (pseudoporfiria). Medicamentos comumente implicados são furosemida, tetraciclinas, sulfonamidas, e naproxeno e outros anti-inflamatórios não esteroides (AINEs).
Como porfirinas são mal dialisadas, alguns pacientes submetidos à hemodiálise a longo prazo desenvolvem uma doença cutânea que lembra PCT; essa doença é denominada pseudoporfiria de doença renal em estágio terminal.
Sinais e sintomas da porfiria cutânea tarda
Os pacientes com porfiria cutânea tardia apresentam fragilidade cutânea, principalmente nas áreas expostas ao sol. A fototoxicidade é retardada: assim, os pacientes nem sempre correlacionam a exposição ao sol aos sintomas.
Porfiria cutânea tardia afeta predominantemente áreas expostas ao sol, incluindo os lóbulos das orelhas nesse paciente.
© Springer Science+Business Media
Essa imagem mostra eritema e bolhas rompidas nos dígitos de um paciente com porfiria cutânea tardia.
Imagem cedida por cortesia de Karen McKoy, MD.
Eritema, bolhas e milia no dorso da mão de um homem com porfiria cutânea tarda.
Com permissão do editor. De White K, Soter N. In Current Dermatologic Diagnosis and Treatment. Editado por I Freedberg, MR Freedberg e MR Sanchez. Philadelphia, Current Medicine, 2001.
Cicatrizes atróficas se formam após a ruptura das bolhas. Algumas bolhas são hemorrágicas.
© Springer Science+Business Media
Há o desenvolvimento de bolhas tensas de forma espontânea ou após pequenos traumas. Algumas bolhas são hemorrágicas. Acompanhando erosões e úlceras, podem ocorrer infecções secundárias, que cicatrizam lentamente, deixando cicatrizes atróficas. A exposição solar ocasionalmente provoca eritema, edema ou prurido.
Pode ocorrer conjuntivite com hiperemia, mas outras mucosas não são afetadas.
Áreas de hipo e hiperpigmentação podem se desenvolver, assim como hipertricose facial e alterações pseudoesclerodermoides.
Diagnóstico da porfiria cutânea tardia
Níveis elevados de profirinas plasmáticas, uroporfirinas urinárias e hepatocarboxilporfirina, e isocoproporfirina fecal
Em pacientes normalmente saudáveis, a fragilidade cutânea e a formação de bolhas sugerem porfiria cutânea tardia. A diferenciação de porfiria aguda com sintomas cutâneos (porfiria variegada e coproporfiria hereditária) é importante, pois os medicamentos porfirinogênicos podem causar sintomas neuroviscerais em pacientes com porfiria variegada e coproporfiria hereditária. Sintomas neurológicos, mentais e abdominais inexplicados anteriores podem sugerir porfiria aguda. História de exposição a produtos químicos que podem causar pseudoporfiria deve ser pesquisada.
Embora todas as porfirias que causam lesões cutâneas provocarem elevação das porfirinas plasmáticas, a elevação das concentrações urinárias de uroporfirinas e heptacarboxilporfirina e de isoproporfirina fecal indicam porfiria cutânea tardia. Os níveis urinários do precursor de PBG é normal na porfiria cutânea tardia. Os níveis urinários de ácido delta-aminolevulínico podem estar ligeiramente aumentados (< 3 vezes o limite superior do normal). A atividade dos eritrócitos no UROD é normal na porfiria cutânea tipo 1 e 3, mas menor (em ~ 50%) no tipo 2.
Todos pacientes com PCT devem passar por testes para infecções por hepatite C e HIV (1). Também deve-se testar os níveis séricos de ferro e ferritina e a capacidade total de ligação do ferro, a fim de determinar se há sobrecarga de ferro; se os resultados sugerem sobrecarga de ferro, deve-se fazer testes genéticos HFE à procura de hemocromatose hereditária (2).
Referências sobre diagnóstico
1. Caballes FR, Sendi H, Bonkovsky HL: Hepatitis C, porphyria cutanea tarda and liver iron: an update. Liver Int 32(6):880–893, 2012. doi:10.1111/j.1478-3231.2012.02794.x
2. Bonkovsky HL, Guo JT, Hou W, et al: Porphyrin and heme metabolism and the porphyrias. Compr Physiol 3(1):365–401, 2013. doi:10.1002/cphy.c120006
Tratamento da porfiria cutânea tardia
Existem quatro estratégias terapêuticas complementares disponíveis:
Redução dos depósitos de ferro do organismo
Aumento da excreção de porfirinas
Tratamento da hepatite C crônica e infecção pelo HIV, quando presentes
A cessação do consumo de bebidas alcoólicas, do tabagismo e do uso de estrogênio, quando presente
Essas estratégias podem ser associadas para obtenção de remissão mais rápida; embora essa associação costume não ser necessária. O tratamento é monitorado pela determinação da ferritina sérica (se terapia de redução de ferro é utilizada) e excreção urinária de porfirina a cada 3 meses até a remissão completa.
Os pacientes devem parar de consumir bebidas alcoólicas e fumar (incluindo maconha).
A remoção do ferro por flebotomia terapêutica costuma ser eficaz. Uma unidade de sangue é removida a cada uma ou duas semanas. Quando a ferritina plasmática cair um pouco abaixo do normal, interrompe-se a flebotomia. Em geral, 6 a 10 sessões são necessárias. As porfirinas da urina e do plasma caem de modo gradual com o tratamento, com um intervalo posterior, mas acompanhando paralelamente a queda da ferritina. A pele acaba se tornando normal. Após a remissão, a flebotomia só é necessária se houver reincidência. Também recomenda-se terapia contínua de redução de ferro quando há hemocromatose hereditária. Nesses pacientes, a ferritina sérica alvo vai de 50 a 150 ng/mL (50 a 150 microgramas/L).
Dose baixa de cloroquina ou hidroxicloroquina (100 a 125 mg por via oral duas vezes por semana) remove o excesso de porfirina do fígado e talvez outros tecidos pelo aumento da taxa de excreção. Doses mais altas podem causar lesões hepáticas transitórias e agravamento da porfiria. Quando se atinge a remissão, interrompe-se o esquema.
Cloroquina e hidroxicloroquina não são eficazes na doença renal avançada, e flebotomia geralmente é contraindicada por causa da anemia subjacente. Entretanto, eritropoietina recombinante mobiliza o excesso de ferro e melhora a anemia o suficiente para permitir a flebotomia. Na doença renal em estágio terminal, associa-se deferoxamina a flebotomia para redução do ferro hepático e a remoção do ferro complexado é feita na diálise. São necessários dialisadores com membranas ultrapermeáveis e frequências de volume sanguíneo extra-altas.
Deve-se avaliar nos pacientes com PCT franca e infecção por hepatite C o tratamento com antivirais de ação direta. A depleção prévia de ferro aumenta a resposta à terapia antiviral com interferon, mas essa depleção parece não ser importante por causa do tratamento atual que utiliza antivirais de ação direta altamente eficazes. Relatos de remissão das lesões cutâneas por PCT após tratamento antiviral têm sido reportados, mas não há documentação suficiente sobre a reversão completa dos defeitos metabólicos e melhora a longo prazo. Entretanto, parece valer a pena primeiro tratar e curar a infecção pelo vírus da hepatite C nesses pacientes antes de decidir acerca da redução do ferro ou do tratamento com hidroxicloroquina (1). Deve-se tratar infecção pelo HIV apropriadamente durante o tratamento da PCT.
Crianças com porfiria cutânea tardia sintomática são tratadas com flebotomias com pequenos volumes ou cloroquina oral; a dose é determinada de acordo com o peso corporal.
Os sintomas cutâneos que ocorrem durante a gestação são tratados com flebotomia. Em casos refratários, podem ser acrescentadas baixas doses de cloroquina; não são reconhecidos efeitos teratogênicos. Dependendo do grau de hemodiluição e depleção de ferro, os sintomas cutâneos geralmente desaparecem com o avanço da gestação.
Interrompe-se a suplementação de estrogênio na pós-menopausa ou outra terapia de reposição de estrogênios, como para homens com câncer de próstata, durante o tratamento da PCT. A suspensão dos estrogênios geralmente induz à remissão. Às vezes, realiza-se substituição do estrogênio sistêmico pelo transdérmico se os sintomas pós-menopáusicos são incômodos, mas ainda pode haver algum risco em razão do grau da absorção sistêmica.
Sugeriu-se o uso de cimetidina como tratamento da PCT, pois se acredita que a cimetidina regula negativamente a ALA sintase-1 hepática. No entanto, a ALA sintase-1 hepática não é suprarregulada de maneira mensurável na PCT. Portanto, não se recomenda o uso rotineiro de cimetidina no tratamento da PCT (2).
Referências sobre o tratamento
1. Rudnick S, Bonkovsky HL: Hepatitis C and porphyria cutanea tarda in 2020. Aliment Pharmacol Therap 51:1432–1434, 2020. doi: 10.1111/apt.15728
2. Fujita Y, Sato-Matsumura KC: Effective treatment for porphyria cutanea tarda with oral cimetidine. J Dermatol 37(7):677–679, 2010. doi:10.1111/j.1346-8138.2010.00838.x
Prevenção da porfiria cutânea tardia
Os pacientes devem evitar a exposição ao sol, utilizando chapéus e roupas e protetores solares de óxido de zinco ou titânio. Os filtros solares típicos que bloqueiam a luz ultravioleta são ineficazes, mas filtros solares que absorvem luz ultravioleta A, como os que contêm dibenzilmetanos, podem ser úteis. Deve-se evitar permanentemente o consumo de bebidas alcoólicas e deve-se interromper o tabagismo. Em geral, a suplementação de estrogênio, especialmente administrada por via transdérmica em doses baixas, pode ser retomada com segurança após a remissão da doença.
Pontos-chave
A porfiria cutânea tardia (PCT) geralmente é adquirida, mas pode ser hereditária.
Os gatilhos incluem ferro hepático elevado, consumo de álcool, exposição a hidrocarbonetos halogenados e infecção por hepatite C ou HIV.
Os medicamentos que comumente desencadeiam a porfiria aguda não causam porfiria cutânea tardia.
Medir uroporfirinas e hepatocarboxilporfirina urinárias, e isocoproporfirina fecal.
Testar para sobrecarga de ferro com níveis séricos de ferro e ferritina e capacidade total de ligação de ferro.
Testar os pacientes com nível sérico elevado de ferritina ou transferrina à procura de mutações no gene HFE.
Reduzir os depósitos de ferro elevados por flebotomia.
Remover porfirinas em excesso dando baixa dose de cloroquina ou hidroxicloroquina.
Tratar os pacientes com hepatite C com medicamentos antivirais de ação direta.
Informações adicionais
Os recursos em inglês a seguir podem ser úteis. Observe que este Manual não é responsável pelo conteúdo destes recursos.
American Porphyria Foundation: tem por objetivo instruir e apoiar os pacientes e as famílias afetadas por porfirias e apoiar pesquisas sobre o tratamento e a prevenção das porfirias
American Porphyria Foundation: Safe/Unsafe Drug Database: Provides an up-to-date list of medications available in the United States to assist physicians in prescribing for patients with porphyrias
United Porphyrias Association: fornece instrução e suporte aos pacientes e suas famílias; fornece informações confiáveis para os profissionais de saúde; promove e apoia pesquisas clínicas para melhorar o diagnóstico e o tratamento das porfirias
European Porphyria Network: Promotes clinical research about porphyrias
The Drug Database for Acute Porphyrias: Provides an up-to-date list of medications available in Europe to assist physicians in prescribing for patients with porphyrias