Neoplasia endócrina múltipla tipo I (NEM I) é uma síndrome autossômica dominante caracterizada por hiperplasia ou adenomas das glândulas paratireoides, tumores de células das ilhotas pancreáticas (também conhecidos como tumores neuroendócrinos pancreáticos) e/ou tumores hipofisários. Gastrinomas duodenais, tumores carcinoides do intestino anterior, adenomas suprarrenais benignos e lipomas também ocorrem. Hiperparatireoidismo e hipercalcemia assintomática comumente ocorrem. Os membros da família são submetidos a triagem genética. O diagnóstico se faz por exames hormonais e de imagem. Os tumores são removidos cirurgicamente se causam sintomas ou suspeita de neoplasia com base nos critérios de tamanho.
(Ver também Visão geral da neoplasia endócrina múltipla.)
A NEM-I é causada por 1 mutação inativadora do gene NEM-I que codifica a transcrição da proteína nuclear menin; > 500 mutações desse gene foram identificadas. A função exata da menin é desconhecida, mas parece ter efeitos de supressão tumoral. Acredita-se que algumas mutações estão associadas a maior taxa de desenvolvimento de tumores das células das ilhotas pancreáticas, uma taxa mais alta de metástases à distância e doenças mais agressivas (1, 2).
Cerca de 40% dos casos de NEM 1 apresentam tumores em todas as 3 glândulas comprometidas:
Paratireoides
Pâncreas
Hipófise
Praticamente qualquer combinação dos tumores e complexos de sintomas delineados a seguir é possível. Um paciente com mutação genética NEM-I e um dos tumores NEM-I apresenta risco de desenvolver qualquer dos outros tumores mais tarde. A idade de início varia de 4 a 81 anos, mas o pico de incidência ocorre dos 20 aos 40 anos. Homens e mulheres são igualmente afetados.
Referências gerais
1. Perrier ND: From initial description by Wermer to present-day MEN1: What have we learned? World J Surg 42(4):1031–1035, 2018.
2. Marx SJ: Recent topics around multiple endocrine neoplasia type 1. J Clin Endocrinol Metab 103(4):1296–1301, 2018.
Sinais e sintomas dae NEM 1
As características clínicas dependem dos elementos glandulares afetados (ver tabela Doenças associadas a múltiplas síndromes de neoplasia endócrina).
Paratireoide
O hiperparatireoidismo está presente em ≥ 95% dos pacientes. A hipercalcemia assintomática é a manifestação mais comum, mas cerca de 25% dos pacientes apresentam evidência de nefrolitíase ou nefrocalcinose (1). Em contraste com os casos esporádicos de hiperparatireoidismo, hiperplasia difusa, que muitas vezes é assimétrica, é típica.
Pâncreas
Tumores das células das ilhotas pancreáticas (também conhecidos como tumores neuroendócrinos pancreáticos) ocorrem em 30 a 90% dos pacientes (1). Eles são um tipo de tumor neuroendócrino gastroenteropancreático (TNE- GEP), que também pode se desenvolver em partes do trato gastrointestinal, geralmente no estômago e no duodeno. Os tumores geralmente são multicêntricos e, às vezes, sintetizam vários hormônios. É comum ocorrerem múltiplos adenomas ou hiperplasia celular difusa; esses tumores podem surgir no duodeno e não no pâncreas. Cerca de 30% dos tumores são metastáticos no momento do diagnóstico. Tumores de células das ilhotas devido à síndrome MEN 1 muitas vezes têm um curso menos agressivo do que os tumores de células das ilhotas que ocorrem esporadicamente.
O tumor enteropancreático funcional mais comum na NEM 1 é o gastrinoma, que pode surgir do pâncreas ou duodeno. Até 80% dos pacientes com NEM 1 têm várias úlceras pépticas decorrentes do aumento da secreção de ácido gástrico estimulado pela gastrina ou altos níveis de gastrina assintomáticos.
Insulinomas são o segundo tumor pancreático funcional mais comum e podem causar hipoglicemia em jejum. Os tumores costumam ser pequenos e múltiplos. A idade de início muitas vezes é < 40.
Tumores enteropancreáticos não funcionantes ocorrem em cerca de um terço dos pacientes com NEM 1. A maioria dos tumores das células das ilhotas, incluindo tumores não funcionantes, secretam polipeptídeo pancreático. Embora a significância clínica seja desconhecida, polipéptido pancreático pode ser útil para triagem. O tamanho do tumor não funcionante se correlaciona com o risco de metástases e morte.
Menos comumente, outros tumores enteropancreáticos funcionais podem ocorrer na NEM 1. Pode ocorrer diarreia secretora grave e causar depleção de líquidos e eletrólitos nos casos de tumor de células das ilhotas não beta. Nesse complexo, conhecido como síndrome da diarreia aquosa, a hipopotassemia e a acloridria (WDHA ou cólera pancreática), foram atribuídas ao peptídeo intestinal vasoativo, embora outros hormônios intestinais ou secretagogos (como as prostaglandinas) possam ter alguma contribuição. Algumas vezes, nos tumores de células das ilhotas não beta, ocorre hipersecreção de glucagon, somatostatina, cromogranina ou calcitonina, secreção ectópica de ACTH ou hormônio liberador de corticotrofina (causando síndrome de Cushing) e hipersecreção do hormônio de crescimento (causando acromegalia).
Hipófise
Tumores hipofisários ocorrem em 15 a 42% dos pacientes com NEM-I (1). De 25 a 90% são prolactinomas (1). Cerca de 25% dos tumores hipofisários secretam GH ou GH e prolactina. O excesso de prolactina pode causar galactorreia nas mulheres e o excesso de GH causa acromegalia clinicamente indiferenciável da acromegalia aleatória. Cerca de 3% dos tumores secretam ACTH, causando a doença de Cushing. A maioria restante é não funcional.
A expansão local do tumor pode causar distúrbios visuais, cefaleia e hipo-hipofisarismo.
Os tumores hipofisários nos pacientes com NEM 1 podem ser maiores e se ter comportamento mais agressivo, podendo ocorrer em uma idade mais precoce do que os tumores hipofisários aleatórios; mas um estudo de coorte de longa duração descobriu que os tumores hipofisários associados à NEM 1 eram mais indolentes, semelhantes aos tumores hipofisários aleatórios (2).
Outras manifestações
Tumores carcinoides, especialmente aqueles derivados do intestino anterior embriológico (timo, pulmões, estômago), ocorrem em 5 a 15% dos pacientes com NEM-I (1). Carcinoides tímicos são mais comuns em homens afetados e um subconjunto deles pode se comportar de forma bastante agressiva. Pode ocorrer a síndrome carcinoide.
Adenomas suprarrenais ocorrem em até 33% dos pacientese podem ser bilaterais. Há o risco de que um adenoma de aparência benigna possa sofrer degeneração em um carcinoma adrenocortical agressivo.
Hiperplasia adenomatosa da tireoide às vezes ocorre em pacientes com NEM 1. O resultado é que a secreção hormonal raramente é alterada, e a significância dessa anormalidade é incerta.
Também podem ocorrer múltiplos lipomas, angiofibromas, meningiomas, ependimomas e colagenomas subcutâneos e viscerais (3).
Em um estudo realizado na Holanda, Estados Unidos, Tasmânia e França, o risco relativo de câncer de mama em pacientes com NEM 1 foi 2,3 a 2,8 vezes maior e a idade do diagnóstico foi um pouco mais jovem do que em participantes sem NEM 1 (4).
Referências sobre sintomas
1. Thakker RV, Newey PJ, Walls GV, et al: Clinical practice guidelines for multiple endocrine neoplasia type 1 (MEN1). J Clin Endocrinol Metab 97(9):2990–3011, 2012.
2. de Laat JM, Dekkers OM, Pieterman CR, et al: Long-term natural course of pituitary tumors in patients with MEN1: Results from the Dutch MEN1 Study Group (DMSG). J Clin Endocrinol Metab 100(9):3288–3296, 2015.
3. Waguespack SG: Beyond the "3 Ps": A critical appraisal of the non-endocrine manifestations of multiple endocrine neoplasia type 1. Front Endocrinol (Lausanne) 2022; 13: 1029041 doi: 10./3389/fendo.2022.1029041
4. Dreijerink KM, Goudet P, Burgess JR, Valk GD, International Breast Cancer in MEN1 Study Group: Breast-cancer predisposition in multiple endocrine neoplasia type 1. N Engl J Med 371(6):583–584, 2014.
Diagnóstico da NEM 1
Concentrações plasmáticas de cálcio, PTH, gastrina e prolactina
Localização do tumor por RM, TC ou ultrassonografia ou 18F-FDG PET/CT
Exame genético
A síndrome NEM-I deve ser considerada em pacientes com tumores de paratireoide, pâncreas ou hipófise, em particular aqueles com história familiar de endocrinopatia. NEM 1 também deve ser considerada em indivíduos diagnosticados com hiperparatireoidismo antes dos 30 anos de idade (1).
Indivíduos em risco devem ser submetidos a testes genéticos com sequenciamento direto de DNA de um painel de genes que podem causar NEM 1 ou síndromes relacionadas, incluindo NEM 4 e outras formas de hiperparatireoidismo familiar (p. ex., CDC73 relacionadas a doenças, que podem incluir a síndrome rara de hiperparatireoidismo e tumores mandibulares).
Todos esses indivíduos também devem ser submetidos à triagem clínica para outros tumores de NEM 1, incluindo avaliação para o seguinte:
Sintomas de doença ulcerosa péptica, diarreia, nefrolitíase, hipoglicemia e hipofisarismo
Defeitos no campo visual, galactorreia, e características de acromegalia e lipomas subcutâneos
Níveis anormais de cálcio sérico, PTH intacto, gastrina e prolactina
Exames laboratoriais e radiológicos adicionais devem ser realizados se esses testes de triagem sugerem endócrina anormalmente relacionada com NEM 1.
Tumor neuroendócrino gastroenteropancreático secretor de gastrina (GEP-NET) do pâncreas ou duodeno é diagnosticado pelo aumento dos níveis plasmáticos basais de gastrina, pela resposta exacerbada da gastrina à infusão de cálcio e pelo aumento paradoxal dos níveis de gastrina após a infusão de secretina. O diagnóstico do tumor de células beta das ilhotas pancreáticas secretor de insulina é feito por meio da detecção de hipoglicemia de jejum com alto níveis plasmáticos de insulina. Concentração basal elevada de polipeptídeo pancreático ou gastrina ou resposta exagerada desses hormônios a uma refeição padrão podem ser os primeiros sinais de envolvimento pancreático.
A acromegalia é diagnosticada pela elevação da concentração de GH que não é suprimida por administração de glicose e pela elevação das concentrações plasmáticas do fator de crescimento semelhante à insulina 1 (somatomedina C).
Ultrassonografia ou tomografia computadorizada (TC) pode ajudar a localizar os tumores. Como esses tumores costumam ser pequenos e difíceis de localizar, podem ser necessários outros exames de imagem (p. ex., TC helicoidal [espiral], angiografia, RM, ultrassonografia endoscópica, ultrassonografia intraoperatória). Uma imagem torácia utilizando tomografia por emissão de pósitrons (PET)/TC com desoxiglicose (18F-FDG) ou marcada com flúor-18 (18F) ou dotatato de gálio (Ga) 68 pode ser útil na distinção entre tumores neuroendócrinos broncopulmonares e nódulos pulmonares benignos, bem como na identificação de carcinoides tímicos (2). Para tumores neuroendócrinos pancreáticos e duodenais, a PET (tomografia por emissão de pósitrons)/TC com dotatato de gálio 68 foi três vezes mais sensível do que a cintilografia com octreotida ou TC em um estudo que analisou as múltiplas modalidades de exames imagem em 26 casos de NEM 1; quando disponível, esse teste deve substituir a cintilografia com octreotida na avaliação por imagem periódica (3).
Triagem genética
Quando um caso índice é identificado, os parentes de 1º grau devem ter a opção de triagem genética. Os membros da família também podem ser avaliados bioquimicamente pela dosagem de cálcio e PTH, que costuma ser útil por causa da alta penetrância do hiperparatireoidismo na NEM 1.
Embora o rastreamento precoce dos familiares de pacientes com NEM 1 antes de apresentarem sintomas não tenha demonstrado redução da morbidade ou da mortalidade, um grande estudo de coorte informou haver um intervalo clinicamente revelante entre o diagnóstico do caso inicial e o diagnóstico dos demais membros da família. Descobriu-se que esse atraso é clinicamente relevante porque os pacientes diagnosticados após um retardo evitável têm maior incidência de tumores pancreáticos, incluindo lesões metastáticas (4, 5).
O diagnóstico genético pré-implantação em embriões concebidos via técnicas de reprodução assistida também está disponível.
Alguns médicos monitoram portadores do gene utilizando imagiologia do pâncreas e hipófise a cada 3 a 5 anos, embora essa triagem não tenha demonstrado melhorar os resultados.
Recomenda-se o rastreamento à procura de câncer de mama a partir dos 40 anos em mulheres com NEM 1 (6).
Referências sobre diagnóstico
1. Thakker RV, Newey PJ, Walls GV, et al: Clinical practice guidelines for multiple endocrine neoplasia type 1 (MEN1). J Clin Endocrinol Metab 97(9):2990–3011, 2012.
2. So A, Pointon O, Hodgson R, Burgess J: An assessment of 18 F-FDG PET/CT for thoracic screening and risk stratification of pulmonary nodules in multiple endocrine neoplasia type 1. Clin Endocrinol (Oxf) 88(5):683–691, 2018.
3. Sadowski SM, Millo C, Cottle-Delisle C, et al: Results of (68)Gallium-DOTATATE PET/CT scanning in patients with multiple endocrine neoplasia type 1. J Am Coll Surg 22:509–517, 2015.
4. van Leeuwaarde RS, van Nesselrooij BP, Hermus AR, et al. Impact of delay in diagnosis in outcomes in MEN1: Results from the Dutch MEN1 Study Group. J Clin Endocrinol Metab 101(3):1159–1165, 2016.
5. de Laat JM, van Leeuwaarde RS, Valk GD: The importance of an early and accurate MEN1 diagnosis. Front Endocrinol 2018; doi.org/10.3389/fendo.2018.00533
6. van Leeuwaarde RS, Dreijerink KM, Ausems MG, et al: MEN1-dependent breast cancer: indication for early screening? Results from the Dutch MEN1 Study Group. J Clin Endocrinol Metab 102:2083–2090, 2017.
Tratamento da NEM 1
Excisão cirúrgica quando possível
Tratamento farmacológico das endocrinopatias
O tratamento do hiperparatireoidismo é principalmente cirúrgico, com paratireoidectomia subtotal; mas a recorrência do hiperparatireoidismo é frequente. Octreotida e cinacalcete podem ajudar a controlar hipercalcemia pós-operatória recorrente ou persistente.
Prolactinoma é geralmente tratado com agonistas da dopamina; outros tumores hipofisários são tratados cirurgicamente.
Tumores de células das ilhotas são mais difíceis de tratar porque as lesões costumam ser pequenas e difíceis de encontrar, múltiplas lesões são comuns, e a cirurgia muitas vezes não é curativa. Pode-se tratar tumores pequenos (< 2 cm) de células não funcionantes das ilhotas pancreáticas com monitoramento ativo; o risco de metástases hepáticas é significativamente maior para tumores > 3 cm (1).
O tratamento de tumores neuroendócrinos gastroenteropancreáticos secretores de gastrina (GEP-NETs, na sigla em inglês) é complexo. Quando possível, o tumor é localizado e removido. Tumores maiores têm maior incidência de metástases, assim os gastrinomas devem ser removidos quando forem menores que um limiar, tipicamente entre 2 e 3 cm. Se a localização e/ou remoção é impossível, um inibidor da bomba de prótons, frequentemente fornece controle a longo prazo da úlcera péptica sintomática.
Em pacientes com insulinomas, se não for possível encontrar um único tumor, recomenda-se pancreatectomia subtotal distal com enucleação de qualquer tumor palpável na cabeça do pâncreas. Diazóxido ou um análogo da somatostatina (octreotida, lanreotida) pode ajudar a tratar hipoglicemia. Estreptozocina ou outros fármacos citotóxicos podem aliviar os sintomas reduzindo a carga tumoral.
Análogos da somatostatina também podem bloquear a secreção hormonal de outros tumores pancreáticos não secretores de gastrina, incluindo tumores carcinoides, e são bem tolerados. Tratamentos paliativos para tumores pancreáticos metastáticos incluem cirurgia de redução de volume hepático e quimioembolização da artéria hepática. Estreptozocina, doxorrubicina e outros fármacos citotóxicos podem aliviar os sintomas reduzindo a carga tumoral.
Como os tumores NEM 1 não ocorrem simultaneamente, os pacientes tendem a ter muito medo da ocorrência de doenças por tumores adicionais neles mesmos ou por doenças que começam em seus parentes. Estudos indicam que isso leva a qualidade de vida mais baixa (medida pelo bem-estar físico e emocional), sugerindo que cuidados de saúde também devem abordar e tratar a carga psicológica dessa doença (2).
Referências sobre o tratamento
1. Nell S, Verkooijen HM, Pieterman CRC, et al: Management of MEN1 related nonfunctioning pancreatic NETs: A shifting paradigm. Results from the Dutch MEN1 Study Group. Ann Surg 267(6):1155-1160, 2018.
2. Leeuwaarde R Pieterman CRC, Bleiker EMA, et al: High fear of disease occurrence is associated with low quality of life in patients with multiple endocrine neoplasia type 1: Results from the Dutch MEN1 Study Group. J Clin Endocrinol Metab 103(6): 2354–2361, 2018.
Pontos-chave
Considerar neoplasia endócrina múltipla tipo 1 em pacientes com tumores das paratireoides, pâncreas e/ou hipófise, particularmente em pacientes com história familiar de um ou mais desses tumores.
As principais manifestações clínicas são aquelas do excesso hormonal, especialmente hipercalcemia devido a hiperparatireoidismo.
Os pacientes devem passar por exames genéticos do gene NEM 1 e avaliação clínica para outros tumores da síndrome.
Quando possível, os tumores são excisados, mas as lesões são muitas vezes múltiplas e/ou difíceis de encontrar.
Às vezes, o excesso hormonal pode ser tratado com medicamentos.