A síndrome hemolítico-urêmica (SHU) é uma doença aguda fulminante caracterizados por trombocitopenia, anemia hemolítica microangiopática e lesão renal aguda. A síndrome hemolítico-urêmica costuma ocorrer em crianças após uma infecção, geralmente por bactérias produtoras de toxinas Shiga (p. ex., Escherichia coli O157:H7), mas também pode ocorrer em adultos. O diagnóstico é feito por exames laboratoriais característicos que demonstrem alterações, como a anemia hemolítica por teste direto negativo para antiglobulina. O tratamento é sintomático (às vezes, incluindo hemodiálise); eculizumabe ou ravulizumabe são raramente indicados.
(Ver também Visão geral dos distúrbios plaquetários.)
Fisiopatologia da síndrome hemolítico-urêmica
A síndrome hemolítico-urêmica, como púrpura trombocitopênica trombótica (PTT), envolve destruição de plaquetas por causa não imunológica. Lesão endotelial é comum. Cepas soltas das plaquetas e fibrina são depositadas em múltiplos pequenos vasos e danificam a passagem de plaquetas e eritrócitos, causando trombocitopenia e anemia significativas (anemia hemolítica microangiopática). As plaquetas também são consumidas dentro de múltiplos pequenos trombos, contribuindo para a trombocitopenia.
Vários órgãos desenvolvem trombos compostos de plaquetas e fator de von Willebrand (FVW) localizados principalmente nas junções arteriocapilares, descritos como microangiopatia trombótica. Cérebro, coração e rins, particularmente, têm probabilidade de serem afetados. Os microtrombos não incluem eritrócitos ou fibrina (diferentemente dos trombos na coagulação intravascular disseminada) e não apresentam a infiltração granulocítica da parede do vaso característica davasculite. Trombos de grandes vasos são incomuns.
Etiologia da SHU
A maioria dos casos ocorre em crianças e segue
Infecção aguda
Mais frequentemente (cerca de 90% dos casos), a infecção é colite hemorrágica aguda resultante da bactéria que produz a toxina Shiga (p. ex., Escherichia coli O157:H7 ou algumas cepas da Shigella dysenteriae). Às vezes, a causa é infecção pneumocócica ou raramente infecção pelo HIV. A ativação do sistema complemento é comum em crianças com SHU causada por infecção aguda.
Uma pequena minoria dos casos não está relacionada à infecção e envolve
Mutações no sistema complemento: essas mutações envolvem genes que controlam as proteínas ou os fatores do complemento, mas às vezes resultam de autoanticorpos adquiridos para certos fatores do complemento. Os distúrbios congênitos do complemento também aumentam o risco de síndrome hemolítico-urêmica (SHU) após uma infecção.
Sinais e sintomas da síndrome hemolítico-urêmica
Crianças com síndrome hemolítica-urêmica (SHU) relacionada à toxina Shiga geralmente têm pródromo de vômito, dor abdominal e diarreia (muitas vezes com sangue) e costumam ter história de exposição a infecções. Pacientes com síndrome hemolítico-urêmica relacionada a pneumococos geralmente têm manifestações de pneumonia, meningite ou sepse. Febre não costuma ocorrer. Cerca de uma semana após o pródromo, desenvolvem-se manifestações da anemia hemolítica, trombocitopenia e lesão renal aguda.
A SHU por mutações do fator de complemento geralmente não tem um pródromo infeccioso, mas pode ser exacerbada por uma infecção.
Manifestações de isquemia se desenvolvem com gravidade variável nos múltiplos órgãos. As manifestações neurológicas ocorrem em cerca de um quarto dos pacientes e incluem fraqueza, confusão mental e convulsões. A lesão renal pode produzir hematúria, diminuição da micção ou anúria e/ou hipertensão arterial. Apesar da trombocitopenia, a púrpura e o sangramento manifesto são incomuns, embora a isquemia do trato gastrointestinal possa causar colite hemorrágica significativa, com dor abdominal, náuseas, vômito e diarreia com sangue. O envolvimento cardíaco pode causar arritmias.
Diagnóstico da síndrome hemolítico-urêmica
Hemograma completo, exame direto do sangue periférico, teste de antiglobulina direto (Coombs), LDH, tempo da protrombina (TP), tempo parcial da protrombina (TPP), fibrinogênio
Exclusão de outros distúrbios trombocitopênicos
Suspeita-se da síndrome hemolítico-urêmica em pacientes com sintomas sugestivos, trombocitopenia, anemia microangiopática e sinais de lesão renal aguda.
Se houver suspeita do distúrbio, realizam-se urinálise, esfregaço de sangue periférico, contagem de reticulócitos, lactato desidrogenase (LDH) sérica, haptoglobina, testes de função renal, bilirrubina sérica (direta e indireta) e teste de antiglobulina direto.
Os níveis de atividade da enzima ADAMTS13 podem ser úteis. A atividade da DAMTS13 é baixa na PTT, mas geralmente não é diminuída na SHU. Essa enzima é uma protease plasmática que cliva o fator de von Willebrand; a deficiência causa púrpura trombocitopênica trombótica (PTT) e a redução nos níveis da atividade da enzima ADAMTS13 pode ajudar a diferenciar entre casos atípicos de PTT e SHU.
A microangiopatia trombótica induzida por medicamentos, que é semelhante à microangiopatia trombótica da SHU, pode ser desencadeada por vários medicamentos, incluindo quinino, ciclosporina, tacrolimo e quimioterápicos contra câncer (p. ex., mitomicina C, gencitabina). Na maioria dos casos, acredita-se que os medicamentos danifiquem os pequenos vasos e causem microtrombos. Na microangiopatia trombótica induzida por fármacos, os níveis de ADAMTS13 são sempre normais e os pacientes não respondem a troca plasmática, corticoides ou inibição do complemento.
O diagnóstico de SHU é sugerido por
Trombocitopenia e anemia
Eritrócitos fragmentados no esfregaço de sangue são indicativos de hemólise microangiopática (esquistócitos: células em capacete, eritrócitos triangulares, eritrócitos com aparência distorcida, ver foto Esquistócitos)
Evidência de hemólise (diminuição no nível de hemoglobina, policromasia, contagem elevada de reticulócitos, LDH e bilirrubina séricas elevadas e haptoglobina reduzida)
Teste de antiglobulina direto negativo
Ausência do uso de um medicamento que pode causar microangiopatia trombótica
Atividade normal da ADAMTS13
Diagnóstico da causa
Exame de fezes (ensaio imunoabsorvente ligado à enzima da toxina Shiga ou cultura média específica para E. coli O157:H7) é feito em crianças com diarreia e também em adultos que têm pródromo de diarreia com sangue (1); no entanto, microrganismo e toxina podem estar limpos na hora do exame.
Em casos atípicos, i.e., pacientes que não tiveram infecção prévia ou que têm doença recorrente, recomenda-se o teste de mutações no gene do fator de complemento. Entretanto, as mutações nem sempre são específicas para SHU atípica (2) e pelo menos metade dos pacientes não tem mutações nos genes do fator de complemento (3).
Referências sobre diagnóstico
1. Gould LH, Bopp C, Strockbine N, et al. Recommendations for diagnosis of shiga toxin--producing Escherichia coli infections by clinical laboratories. MMWR Recomm Rep 2009;58(RR-12):1-14.
2. Timmermans SAMEG, Wérion A, Damoiseaux JGMC, Morelle J, Reutelingsperger CP, van Paassen P. Diagnostic and Risk Factors for Complement Defects in Hypertensive Emergency and Thrombotic Microangiopathy. Hypertension 2020;75(2):422-430. doi:10.1161/HYPERTENSIONAHA.119.13714
3. Maga TK, Nishimura CJ, Weaver AE, Frees KL, Smith RJ. Mutations in alternative pathway complement proteins in American patients with atypical hemolytic uremic syndrome. Hum Mutat 2010;31(6):E1445-E1460. doi:10.1002/humu.21256
Tratamento da síndrome hemolítico-urêmica
Tratamento de suporte, muitas vezes incluindo hemodiálise
Para os casos que envolvem desregulação do complemento, às vezes eculizumabe, ravulizumabe ou pegcetacoplan
Diarreia típica associada à síndrome hemolítico-urêmica em crianças causada por infecção entero-hemorrágica normalmente desaparece de maneira espontânea e o tratamento é de suporte; não se utiliza antibióticos. Mais da metade dos pacientes exige diálise renal, caso em que é comumente administrado eculizumabe ou ravulizumabe. Diferentemente da púrpura trombocitopênica trombótica, troca plasmática e corticoides não são utilizados.
Em pacientes com SHU causada por desregulação do complemento (incluindo a maioria das crianças), a inibição do complemento com eculizumabe, ravulizumabe ou pegcetacoplan frequentemente pode reverter a insuficiência renal (1). (Iptacopan, outro inibidor oral do fator B do sistema complemento, ainda não foi estudado nessa condição.) Crianças com deficiência hereditária conhecida ou presumida de proteínas reguladoras do complemento como o fator H são particularmente propensas a responder ao eculizumabe, ravulizumabe, ou, possivelmente, pegcetacoplan.
Em pacientes sem uma deficiência conhecida do fator de complemento, os medicamentos inibitórios do complemento geralmente podem ser interrompidos quando os sinais de atividade da doença desaparecem.
Referência sobre o tratamento
1. Loirat C, Fakhouri F, Ariceta G, et al. An international consensus approach to the management of atypical hemolytic uremic syndrome in children. Pediatr Nephrol 2016;31(1):15-39. doi:10.1007/s00467-015-3076-8
Pontos-chave
As plaquetas e os eritrócitos são destruídos de modo não imunológico, levando à trombocitopenia e anemia; insuficiência renal é comum em crianças e adultos com a síndrome hemolítico-urêmica.
A causa em crianças costuma ser colite hemorrágica resultante de bactérias produtoras da toxina Shiga.
As causas menos comuns envolvem a desregulação do complemento de uma variedade de causas herdadas e adquiridas.
A diarreia típica associada à síndrome hemolítico-urêmica em crianças costuma desaparecer espontaneamente com tratamento de suporte, embora metade das crianças afetadas exija diálise renal e o uso da inibição de complemento.
A SHU devido a mutações/deficiência do fator complemento pode responder à inibição do complemento utilizando eculizumabe e ravulizumabe.