Os transplantes de córnea são realizados por diversas razões:
Para reconstruir a córnea (p. ex., para substituir uma córnea perfurada)
Para aliviar dor intratável (p. ex., forte sensação de corpo estranho devido a recorrente ruptura de bolha em ceratopatia bolhosa)
Para tratar uma doença que não responde ao tratamento médico (p. ex., úlcera da córnea fúngica descontrolada grave)
Para melhorar as qualidades ópticas da córnea e, portanto, a acuidade visual (p. ex., substituir uma córnea com cicatriz após úlcera corneana, que está turva devido a edema como ocorre na distrofia de Fuchs ou após cirurgia de catarata, que está opaca por depósitos anormais e não transparentes de proteínas estromais corneanas, como ocorre na distrofia estromal corneana hereditária ou com astigmatismo irregular como ocorre no ceratocone)
Indicações
As indicações mais comuns de transplante de córnea são:
Ceratopatia bolhosa (pseudofácica ou afácica, distrofia endotelial de Fuchs)
Ceratite ou pós-ceratite (causada por infecção viral, bacteriana, fúngica ou Acanthamoeba, ou perfuração)
Distrofias estromais corneanas
Enxerto malsucedido
Procedimento
O teste de compatibilidade tecidual não é rotineiramente realizado. Tecido cadavérico de doadores pode ser utilizado, a menos que haja suspeita de doenças transmissíveis.
O transplante de córnea pode ser realizado sob anestesia geral ou anestesia local com sedação intravenosa.
Antibióticos tópicos são utilizados por várias semanas após a cirurgia e corticoides tópicos são utilizados por vários meses. Para proteger o olho contra traumas acidentais após a realização do transplante, o paciente é orientado a utilizar tampão ou óculos de grau ou de sol.
RALPH C. EAGLE, JR./SCIENCE PHOTO LIBRARY
Se o transplante envolve a espessura total da córnea (como na ceratoplastia penetrante, ou PKP), a obtenção da melhor acuidade visual final pode levar mais de 18 meses em razão de alterações na refração após a remoção da sutura.
Na doença corneana limitada ao estroma corneano e com endotélio em bom funcionamento, como no ceratocone, usa-se uma técnica de transplante de córnea conhecida como ceratoplastia lamelar anterior profunda (CLAP); neste procedimento, o tecido corneano doado substitui apenas o estroma e o epitélio da córnea. A cirurgia é tecnicamente mais difícil e o procedimento leva mais tempo para ser realizado do que um transplante de córnea de espessura total.
Apenas o endotélio da córnea tem de ser transplantado em doenças em que o estroma corneano é transparente, tem superfície estromal suave com curvatura regular, e somente se o endotélio da córnea não funciona bem (p. ex., distrofia de Fuchs, queratopatia bolhosa resultante de cirurgia de cataratas). No transplante endotelial de córnea, existem 2 técnicas: a ceratoplastia endotelial com remoção da lâmina limitante posterior (Descemet stripping endothelial keratoplasty, DSEK) e a mais recente, queratoplastia endotelial com lâmina limitante posterior (descemet membrane endothelial keratoplasty, DMEK). A DMEK utiliza enxerto mais fino que a DSEK e tem resultados melhores (p. ex., cicatrização mais rápida, menos rejeições e melhor acuidade visual) em comparação à DSEK e ao transplante de córnea de espessura total. Entretanto, DMEK é uma técnica mais difícil e com mais frequência requer cirurgia adicional para corrigir complicações (p. ex., reposicionamento de enxerto que deslizou para fora da posição).
Em pacientes com distrofia corneana de Fuchs envolvendo apenas a córnea central, usa-se outra técnica de transplante de córnea, chamada remoção da lâmina limitante posterior somente (Descemet stripping only [DSO], não um verdadeiro transplante, pois nada é transplantado). Remove-se o endotélio corneano central; o uso de inibidores tópicos da rho quinase acelera a migração das células periféricas do endotélio corneano para preencher o defeito. As células migradas reduzem o edema estromal da córnea e a visão melhora. Há menos preocupação quanto à ruptura do globo no trauma menor porque a incisão é muito pequena. O edema da córnea não desaparece em todas as pessoas. Nesse caso, pode-se realizar um DMEK ou DSEK.
Complicações
As complicações incluem:
Rejeição ao transplante
Infecção (intraocular e corneana)
Vazamento de humor aquoso pelas bordas do transplante
Falência do enxerto
Alto erro refrativo (especialmente astigmatismo e/ou miopia)
Recorrência da doença (ou seja, herpes simples, distrofia estromal corneana hereditária)
Como nenhum endotélio estranho é transplantado na DSO, não há risco de rejeição. As taxas de rejeição de enxertos para ceratoplastia penetrante costumam ser < 10% (p. ex., em pacientes com ceratopatia bolhosa precoce) (1), mas podem ser mais altas em populações de pacientes de alto risco (p. ex., aqueles com lesão química). A prevalência de rejeição é mais baixa para a DSEK do que para a ceratoplastia penetrante, e mais baixa ainda para a DMEK, de 1% a 3% (2).
Os pacientes se queixam de diminuição da acuidade visual, aumento da sensibilidade à luz, dor e rubor oculares. A rejeição ao transplante é tratada com corticoides tópicos (p. ex., prednisolona), algumas vezes associados à injeção periocular (p. ex., metilprednisolona). Se rejeição ao transplante for grave ou se a viabilidade do transplante estiver muito comprometida, podem-se prescrever corticoides adicionais por vias oral (p. ex., prednisona) e, ocasionalmente, intravenosa (p. ex., metilprednisolona). Em geral, a rejeição é reversível, e a função do enxerto volta ao normal. Pode ocorrer falência do enxerto se a rejeição for muito grave, de longa duração ou se ocorrerem múltiplos episódios de rejeição ao enxerto. É possível realizar um retransplante, porém o prognóstico a longo prazo é pior do que em casos de transplante primário. Uma ceratoprótese (córnea artificial) pode ser colocada se enxertos falharem repetidamente.
Referências sobre complicações
1. Thompson RW Jr, Price MO, Bowers PJ, Price FW Jr. Long-term graft survival after penetrating keratoplasty. Ophthalmology 110(7):1396-402, 2003. doi: 10.1016/S0161-6420(03)00463-9
2. Deng SX, Lee WB, Hammersmith KM, Kuo AN, Li JY, Shen JF, Weikert MP, Shtein RM. Descemet Membrane Endothelial Keratoplasty: Safety and Outcomes: A Report by the American Academy of Ophthalmology. Ophthalmology 25(2):295-310, 2018. doi: 10.1016/j.ophtha.2017.08.015
Prognóstico para transplante de córnea
As chances de sucesso a longo prazo para transplante são (1, 2)
> 90% para ceratocone, cicatrizes corneanas traumáticas, ceratopatia bolhosa precoce, distrofia de Fuchs
De 70 a 90% nos casos de ceratopatia bolhosa avançada ou ceratite viral inativa
De 50% para infecção corneana ativa
14% para queimaduras químicas
O uso de lentes de contato rígidas pode resultar em visão mais cedo e melhor para muitos pacientes que se submeteram à ceratoplastia penetrante. Em geral, a melhora máxima da visão ocorre mais rapidamente com DMEK do que com DSEK (3). A visão 20/20 é mais comum com a DMEK do que com a DSEK.
A taxa de sucesso geralmente alta nos transplantes de córnea é atribuída a vários fatores, incluindo o fato de a córnea ser avascular e a câmara anterior possuir drenagem venosa, mas não drenagem linfática. Essas condições promovem uma zona de baixa tolerância (uma tolerância imunológica resultante da constante exposição a baixas doses de antígenos) e um processo ativo, denominado desvio imunitário associado à câmara anterior, no qual há supressão dos linfócitos intraoculares e hipersensibilidade tardia aos antígenos intraoculares transplantados. Outro fator importante é a eficiência dos corticoides (tópicos, locais e sistêmicos) utilizados no tratamento da rejeição ao transplante.
Referências sobre prognóstico
1. Barraquer RI, Pareja-Aricò L, Gómez-Benlloch A, Michael R. Risk factors for graft failure after penetrating keratoplasty. Medicine (Baltimore) 98(17):e15274, 2019. doi: 10.1097/MD.0000000000015274
2. Thompson RW Jr, Price MO, Bowers PJ, Price FW Jr. Long-term graft survival after penetrating keratoplasty. Ophthalmology 110(7):1396-402, 2003. doi: 10.1016/S0161-6420(03)00463-9
3. Deng SX, Lee WB, Hammersmith KM, et al: Descemet membrane endothelial keratoplasty: Safety and outcomes: A report by the American Academy of Ophthalmology. Ophthalmology 125(2):295-310, 2018. doi: 10.1016/j.ophtha.2017.08.015
Transplante de células-tronco límbicas corneanas
O transplante de células-tronco límbicas substitui cirurgicamente células-tronco na periferia da córnea (na área em que a conjuntiva encontra a córnea). As células-tronco hospedeiras normalmente residem nessa área. O transplante é feito quando as células-tronco são seriamente afetadas para se recuperar da lesão ou doença.
Condições como graves queimaduras causadas por produto químico, síndrome de Steven-Johnson e danos sérios provocados pelo uso prolongado de lentes de contato podem causar feridas epiteliais persistentes e incuráveis na córnea. Esses defeitos são decorrentes da falência das células-tronco epiteliais corneanas em produzir células epiteliais suficientes para repovoar a córnea. Defeitos epiteliais corneanos persistentes e não tratados são vulneráveis à infecção, podendo resultar em cicatrizes e/ou perfuração. Nessas circunstâncias, um transplante de córnea, que substitui apenas a parte central e não o limbo, não é suficiente. Células-tronco são necessárias para produzir novas células epiteliais de superfície que irão repovoar a córnea, restaurando a capacidade regenerativa da superfície ocular.
Células-tronco límbicas corneanas podem ser transplantadas a partir do olho sadio do próprio paciente ou de um doador morto. O epitélio corneano danificado é parcialmente removido por meio de uma dissecação límbica (isto é, todo o epitélio e a superfície do estroma). O tecido límbico do doador é preparado e suturado no leito do receptor. Imunossupressão sistêmica é necessária após enxertos límbicos de cadáveres.
Pontos-chave
As indicações para o transplante de córnea são múltiplas como o tratamento de ceratopatia bolhosa, ceratocone, ceratite, queimaduras químicas da córnea e distrofias do estroma da córnea.
Dependendo da indicação, toda a espessura da córnea, estroma corneano, apenas o endotélio da córnea ou células-tronco da córnea são transplantados.
A compatibilidade tecidual geralmente não é feita; os tratamento pós-transplante é feito com antibióticos e corticoides tópicos e proteção ocular (p. ex., tapa-olho).
A queratoplastia endotelial com lâmina limitante posterior (DMEK) tem as menores taxas de rejeição e as maiores taxas de obtenção de visão 20/20 e pode levar apenas 2 meses até a melhora máxima da visão.