Úlcera péptica é a erosão em um segmento de mucosa gástrica, classicamente no estômago (úlcera gástrica) ou nos primeiros centímetros do duodeno (úlcera duodenal), que penetra a mucosa muscular. Praticamente todas as úlceras são causadas por Helicobacter pylori oup uso de um anti-inflamatório não esteroide (AINE). Os sintomas consistem tipicamente em dor epigástrica em queimação, que em geral é aliviada com a alimentação. O diagnóstico é por endoscopia e teste para Helicobacter pylori. O tratamento consiste em supressão ácida, erradicação de H. pylori (se presente) e abstenção do uso de AINEs.
(Ver também Visão geral da secreção ácida e Visão geral da gastrite.)
O tamanho das úlceras pode variar de vários milímetros a vários centímetros. As úlceras se diferenciam das erosões pela profundidade da penetração; as erosões são mais superficiais e não envolvem a mucosa muscular.
As úlceras podem aparecer em qualquer idade, incluindo lactentes e crianças, mas são mais comuns em adultos de meia-idade.
Etiologia da doença da úlcera péptica
H. pylori e os anti-inflamatórios não esteroides (AINEs) prejudicam as defesas e a capacidade de reparação da mucosa, tornando-a mais suscetível ao ácido gástrico. H. pylori é a causa da infecção em 50 a 70% dos pacientes com úlcera duodenal e em 30 a 50% dos pacientes com úlcera gástrica. Quando se erradica H. pylori, somente 10% dos pacientes apresentam recorrência da doença ulcerosa péptica, comparados a 70% de recorrência em pacientes tratados com supressão ácida isoladamente. O uso de AINEs responde por mais de 50% das úlceras pépticas.
O tabagismo é um fator de risco do desenvolvimento de úlceras e suas complicações. O tabagismo também interfere na cicatrização e aumenta a incidência de recorrência. O risco se correlaciona ao número de cigarros fumados por dia. Embora o álcool seja um potente estimulante da secreção ácida, não existem dados definitivos ligando o consumo moderado de álcool ao desenvolvimento ou aumento do tempo de cicatrização das úlceras. Bem poucos pacientes têm hipersecreção de gastrina causada por gastrinoma (síndrome de Zollinger-Ellison).
Antecedentes familiares estão presentes em 50 a 60% das crianças com úlcera duodenal.
Sinais e sintomas da doença ulcerosa péptica
Os sinais e sintomas dependem da localização da úlcera e da idade do paciente; muitos pacientes, em particular os idosos, são oligossintomáticos ou assintomáticos. A dor é o sintoma mais comum, geralmente localizada no epigástrico e aliviada com a alimentação ou uso de antiácidos. A dor é descrita como queimação ou corrosão ou sensação de fome, algumas vezes. Seu curso é geralmente crônico e recorrente. Somente cerca da metade dos pacientes tem sintomas característicos.
Os sintomas da úlcera gástrica não seguem um padrão consistente (p. ex., a alimentação às vezes exacerba os sintomas, em vez de melhorá-los). Isto é especialmente verdadeiro para úlceras do canal pilórico, que em geral são associadas a sintomas de obstrução (p. ex., distensão, náuseas, vômitos) causados por edema e cicatrização.
As úlceras duodenais tendem a produzir uma dor mais consistente. O paciente acorda sem dor, mas a dor aparece no meio da manhã e melhora com a alimentação, mas volta de 2 a 3 horas depois da refeição. Dor que acorda o paciente no meio da noite é comum e bastante sugestiva de úlcera duodenal. Em neonatos, perfuração e hemorragia podem ser as primeiras manifestações de úlcera duodenal. A hemorragia pode também ser o primeiro sinal na infância, embora vômitos de repetição ou evidência de dor abdominal possam ser sugestivos.
Diagnóstico da doença ulcerosa péptica
Endoscopia
Algumas vezes, níveis de gastrina sérica
O diagnóstico de úlcera péptica é sugerido pela história do paciente e confirmado por endoscopia. Em geral, o tratamento empírico inicia-se sem diagnóstico definitivo. Entretanto, a endoscopia permite biópsias ou escovado para citologia gástrica e lesões esofágicas, para a diferenciação de simples ulceração e câncer gástrico ulcerado. O câncer gástrico pode estar presente com manifestações similares e deve ser excluído, em especial nos pacientes com > 45 anos de idade, com perda ponderal ou que referem sintomas intensos ou refratários. A incidência da úlcera duodenal maligna é extremamente baixa, assim geralmente não se justificam biópsias das lesões duodenais. Endoscopia também pode ser utilizada para o diagnóstico definitivo da infecção por H. pylori, que deve ser estabelecido quando a úlcera é detectada (ver Diagnóstico da infeção por H. pylori).
Deve-se considerar câncer secretor de gastrina e gastrinoma quando há múltiplas úlceras, quando as úlceras se desenvolvem em locais atípicos (p. ex., pós-bulbar) ou são refratárias ao tratamento, ou quando o paciente apresentar diarreia ou perda ponderal proeminente. Os níveis de gastrina sérica devem ser medidos nesses pacientes.
Complicações da doença ulcerosa péptica
Hemorragia
Hemorragia gastrointestinal leve a grave é a complicação mais comum da doença ulcerosa péptica.
Os sinais e sintomas são hematêmese (vômitos com sangue vivo ou em “borra de café”); sangue nas fezes ou fezes negras (hematoquezia e melena, respectivamente); fraqueza, hipotensão postural, síncope, sede e sudorese causadas pela perda de sangue.
Penetração (perfuração bloqueada)
Uma úlcera péptica pode penetrar a parede do estômago ou do duodeno. Se as aderências impedirem o vazamento para a cavidade abdominal, evita-se a perfuração livre e ocorre perfuração bloqueada. A úlcera pode penetrar no espaço confinado adjacente (saco menor) ou outro órgão (p. ex., pâncreas, fígado).
A dor pode ser intensa, persistente, referida em outros locais além do abdome (normalmente nas costas, quando ocorre a penetração de úlcera duodenal posterior no pâncreas) e alterada pela posição do corpo.
TC ou RM geralmente são necessárias para a confirmação diagnóstica.
Quando o tratamento não gera cicatrização, a cirurgia é necessária.
Perfuração livre
Úlceras que perfuram para a cavidade abdominal não limitada por aderências em geral estão localizadas na parede duodenal anterior ou, com menos frequência, no estômago.
O paciente se apresenta com abdome agudo. Há uma dor súbita, intensa e contínua no epigástrio que se dissemina rapidamente pelo abdome, geralmente tornando-se proeminente no quadrante inferior direito e, às vezes, referida em ambos os ombros. O paciente normalmente permanece deitado, pois até a respiração profunda piora a dor. A palpação do abdome é dolorosa, há descompressão brusca, os músculos abdominais permanecem contraídos (abdome em tábua) e os ruídos hidroaéreos estão diminuídos ou ausentes. Pode haver evolução para choque, sinalizado por aumento da frequência cardíaca, baixa pressão arterial e diminuição do débito urinário. Os sintomas são menos pronunciados nos idosos ou nos pacientes terminais e nas pessoas que tomam corticoides ou imunossupressores.
O diagnóstico é confirmado quando uma radiografia ou TC mostra ar livre sob o diafragma ou na cavidade peritoneal. Radiografias de tórax e abdome, em pé, são as preferidas. A incidência mais sensível é a radiografia de tórax de perfil. Pacientes gravemente enfermos podem não ter condições de sentar-se ou ficar em pé e devem ser submetidos à radiografia do abdome em decúbito lateral. A falha em detectar ar livre não exclui o diagnóstico.
É necessária cirurgia imediata. Quanto maior a demora, pior o prognóstico. Antibióticos intravenosos eficazes contra flora intestinal (p. ex., cefotetana ou amicacina associada a clindamicina) devem ser prescritos. Normalmente, inserção de uma sonda nasogástrica para fazer aspiração nasogástrica contínua. Em casos raros em que a cirurgia não pode ser feita, o prognóstico é ruim.
Obstrução gástrica distal
A obstrução pode ser causada por fibrose, espasmo ou inflamação resultante de uma úlcera.
Os sinais e sintomas são vômitos recorrentes em grande volume, de aparecimento mais comum no final do dia e com frequência até 6 horas após a última refeição. Perda de apetite com persistência de distensão ou sensação de plenitude estomacal após se alimentar, sugere obstrução distal gástrica. Vômitos prolongados podem causar emagrecimento, desidratação e alcalose.
Se a história do paciente sugerir obstrução, exame físico, aspirado gástrico ou radiografias podem fornecer evidências do conteúdo gástrico retido. A ausculta de ruído lembrando um esguicho > 6 horas após refeição ou aspiração de líquidos e resíduos alimentares > 200 mL após jejum de uma noite, sugerem retenção gástrica. Se a aspiração gástrica mostrar retenção acentuada, deve-se esvaziar o estômago e realizar endoscopia ou exames de imagem seccionais com TC para determinar o local, a causa e o grau de obstrução.
Edema ou espasmo causado por úlcera ativa do canal pilórico é tratado com descompressão gástrica por aspiração nasogástrica e supressão ácida (p. ex., bloqueadores IV de H2 ou inibidor IV da bomba de prótons). Desidratação e desequilíbrio eletrolítico secundários a vômitos ou aspiração prolongada devem ser rigorosamente pesquisados e corrigidos. Agentes pró-cinéticos não são indicados. Em geral, a obstrução se resolve em 2 a 5 dias de tratamento. A obstrução prolongada pode resultar de cicatriz péptica e responder à dilatação endoscópica com balão. A cirurgia é necessária para melhorar a obstrução em casos selecionados.
Recorrência
Fatores que influenciam na recidiva da úlcera são não conseguir erradicar o H. pylori, uso de anti-inflamatório não esteroide (AINE) e tabagismo. Com menos frequência, uma gastrinoma pode ser a causa. A incidência de recidiva em 3 anos das úlceras gástricas e duodenais é < 10% ao erradicar o H. pylori com sucesso, mas é > 50% quando a erradicação não tiver sido alcançada. Portanto, um paciente com doença recorrente deve ser testado para H. pylori e tratado novamente se os testes forem positivos.
Embora o tratamento de longo prazo com bloqueadores H2, inibidores da bomba de prótons ou misoprostol diminua o risco de recorrência, não se recomenda seu uso rotineiro para esse propósito. Contudo, pacientes que necessitam utilizar AINEs depois de terem úlcera são candidatos à terapia prolongada, do mesmo modo que pacientes com úlceras marginais, perfuração anterior ou sangramento.
Câncer de estômago
Pacientes com úlceras associadas a H. pylori apresentam riscos 3 a 6 vezes maiores de processo canceroso gástrico posteriormente. Não há risco aumentado de neoplasia em úlceras de outra etiologia.
Tratamento da úlcera péptica
Erradicação de H. pylori, quando presente
Medicamentos supressores de ácidos
O tratamento das úlceras gástricas e duodenais requer a erradicação do H. pylori quando presente (ver também as diretrizes 2017 do American College of Gastroenterology para o tratamento de infecção por Helicobacter pylori [American College of Gastroenterology’s 2017 guidelines for the treatment of Helicobacter pylori infection]) e redução da acidez gástrica. Para úlceras duodenais, é particularmente importante a supressão da secreção ácida noturna.
Os métodos de diminuição da acidez incluem um grande número de medicamentos, todos eficazes, mas cujo custo, duração de tratamento e conveniência posológica são variáveis. Além disso, podem ser utilizadas medicamentos protetoras da mucosa gástrica (p. ex., sucralfato) e cirurgias com o intuito de diminuir a produção de ácido. Medicamentos são discutidos em outras partes.
Adjuntos
Tabagismo deve ser interrompido e consumo de álcool deve ser descontinuado ou limitado a pequenas quantidades de álcool diluído. Não existem evidências de que a mudança de dieta acelere a cicatrização das úlceras ou evite a recorrência. Assim, muitos clínicos recomendam que se eliminem somente os alimentos que causam algum desconforto.
Cirurgia
Com a atual terapia medicamentosa, o número de pacientes que necessitam de cirurgia diminuiu drasticamente. São ainda indicações cirúrgicas os casos de perfuração, obstrução, sangramento não controlado ou de repetição e, embora raros, sintomas não responsivos ao tratamento medicamentoso.
A cirurgia consiste em um procedimento para reduzir a produção ácida, geralmente combinado com procedimento que garanta o esvaziamento gástrico. A cirurgia recomendada para úlcera duodenal é superseletiva (limitada aos nervos do corpo gástrico e com preservação da inervação antral, prevenindo a necessidade de drenagem). Esse procedimento acarreta mortalidade muito baixa e diminui a morbidade associada à ressecção e vagotomia tradicional. Outros procedimentos que diminuem a produção de ácido pelo estômago são: antrectomia, hemigastrectomia, gastrectomia parcial e gastrectomia subtotal (isto é, ressecção de 30 a 90% do estômago distal). Esses procedimentos são tipicamente combinados à vagotomia troncular. Pacientes submetidos a procedimentos com ressecção ou tenham obstrução necessitam de drenagem gástrica via gastroduodenostomia (Billroth I) ou gastrojejunostomia (Billroth II).
A incidência e o tipo dos sintomas pós-cirúrgicos variam de acordo com o tipo de operação. Depois de uma cirurgia com ressecção, até 30% dos pacientes apresentam sem sintomas significativos, incluindo perda ponderal, má digestão, anemia, síndrome de dumping, hipoglicemia reativa, problemas mecânicos e recorrência ulcerosa.
A perda ponderal é comum depois de gastrectomia subtotal; o paciente pode limitar sua ingestão alimentar por causa da saciedade precoce (porque a bolsa gástrica residual é pequena) ou para prevenir síndrome de dumping ou outras síndromes pós-prandiais. Com uma bolsa gástrica pequena, distensão ou desconforto podem ocorrer depois de uma refeição, mesmo uma moderada; os pacientes devem ser encorajados a fazer refeições menores e mais frequentes.
Má digestão e esteatorreia causadas pelo desvio pancreatobiliar, em especial na anastomose tipo Billroth II, podem contribuir para a perda ponderal.
Anemia é comum (em geral por deficiência de ferro, mas ocasionalmente por deficiência de vitamina B12 causada por perda do fator intrínseco ou hipercrescimento bacterianona alça aferente) e pode ocorrer osteomalácia. A suplementação de vitamina B12, IM, é recomendada a todos os pacientes com gastrectomia total, mas pode ser também administrada a pacientes com gastrectomia subtotal se houver suspeita da deficiência.
A síndrome de dumping pode ocorrer após procedimentos cirúrgicos de estômago, em particular ressecções. Fraqueza, tontura, sudorese, náuseas, vômitos e palpitações ocorrem logo depois de comer, em especial refeições hiperosmolares. Esse fenômeno é chamado de dumping precoce, sua causa permanece ainda não totalmente esclarecida, mas é provável que decorra de reflexos autonômicos, contração do volume intravascular e liberação de peptídeos vasoativos pelo intestino delgado. Modificações dietéticas, com refeições menores e fracionadas e diminuição da ingestão de carboidratos, geralmente ajudam.
Hipoglicemia reativa ou dumping tardio (outra forma da síndrome) é secundária ao rápido esvaziamento gástrico de carboidratos do coto gástrico. Picos altos e precoces da glicemia causam liberação exacerbada de insulina, que produz hipoglicemia sintomática várias horas após a refeição. Recomenda-se uma dieta rica em proteínas e pobre em carboidratos, com ingestão calórica adequada (refeições frequentes e pequenas).
Problemas mecânicos (incluindo gastroparesia e formação de bezoares) podem ocorrer secundários à diminuição das contrações gástricas da fase III, que são alteradas depois da antrectomia e vagotomia. Diarreia é especialmente comum após vagotomia, mesmo sem ressecção (piloroplastia).
A recorrência ulcerosa ocorre em 5 a 12% dos pacientes após vagotomia supersseletiva e em 2 a 5% após resseção cirúrgica, segundo estudos antigos. Diagnosticam-se úlceras recorrentes por endoscopia e, geralmente, respondem aos inibidores de bomba de prótons ou bloqueadores H2. Para úlceras que continuam a recorrer, a eficácia da vagotomia deve ser verificada por análise gástrica, eliminando-se H. pylori, se presente, e afastando-se gastrinoma por meio de estudos de gastrina sérica.
Pontos-chave
Úlceras pépticas afetam o estômago ou o duodeno e podem ocorrer em qualquer idade, incluindo a infância e a adolescência.
A maioria das úlceras é causada por infecção por H. pylori ou uso de anti-inflamatório não esteroide; ambos os fatores desarticulam os mecanismos normais de defesa e reparo da mucosa, tornando-a mais sensível ao ácido gástrico.
A dor em queimação é comum; alimentos podem piorar os sintomas da úlcera gástrica, mas aliviar os sintomas da úlcera duodenal.
As complicações agudas são o sangramento e a perfuração gastrointestinal; as complicações crônicas são obstrução do esvaziamento gástrico, recorrência e, quando a etiologia é a infecção por H. pylori, câncer de estômago.
O diagnóstico é feito por endoscopia e testes para H. pylori.
Administrar medicamentos supressores de ácidos para erradicar H. pylori.
Informações adicionais
O recurso em inglês a seguir pode ser útil. Observe que este Manual não é responsável pelo conteúdo deste recurso.
American College of Gastroenterology: Guidelines for the treatment of Helicobacter pylori infection (2017)