O ácido fluorídrico (HF) é comumente utilizado na indústria e a exposição cutânea a este agente causa uma dolorosa lesão de tecidos moles e uma lesão profundamente penetrante, além de toxicidade local e, às vezes, sistêmica, por fluoreto. O tratamento inclui cuidados locais da queimadura e cálcio tópico e/ou parenteral.
O ácido fluorídrico (HF) é comumente utilizado em inúmeros processos industriais, incluindo refinamento de petróleo, gravação em silício e vidro, produção de refrigerantes, produção de fluoropolímero e produção de metal de alumínio. Também utiliza-se o HF para a limpar ladrilhos e pedras, remover ferrugem e limpar rodas. Embora a maioria dos casos de exposição ao HF seja ocupacional, alguns produtos que contêm HF estão disponíveis para compra no varejo, o que permite que ocorra a exposição não ocupacional.
O HF é um ácido fraco (pKa = 3,17) em solução aquosa diluída e existe principalmente na forma não ionizada. Em comparação com ácidos fortes que existem principalmente na forma ionizada, o HF em soluções diluídas pode penetrar melhor a barreira da pele e se difundir nos tecidos moles locais, onde causa lesão. Ácidos fortes causam apenas lesão cáustica direta (necrose coagulativa, que tipicamente poupa os tecidos moles subjacentes), mas o HF causa lesão cutânea cáustica devido à sua acidez e também lesiona os tecidos moles subjacentes devido à penetração do íon fluoreto.
Nos espaços aquosos intracelulares e extracelulares, o fluoreto forma complexos com cátions divalentes (cálcio, magnésio), formando fluoreto de cálcio e fluoreto de magnésio insolúveis. A formação desses sais insolúveis promove a liberação de mais íons fluoreto do HF (de acordo com o princípio de Le Chatelier). A remoção do cálcio e magnésio da solução resulta em hipocalcemia e hipomagnesemia locais, que pode causar disfunção e morte celular. Com exposição suficiente, podem ocorrer hipocalcemia e hipomagnesemia sistêmicas, resultando em arritmias cardíacas. Além disso, o próprio íon fluoreto pode ser arritmogênico.
O tempo entre o momento da exposição e o início dos sintomas varia e está inversamente relacionado com a concentração de HF. A exposição a preparações concentradas (> 50% de HF) resulta em dor e lesão tecidual imediatas devido ao efeito cáustico direto na pele ou mucosas. Esse efeito é parcialmente decorrente do aumento acentuado da acidez do HF em altas concentrações e da homoassociação do HF, resultando em maior quantidade de prótons dissociados. Por outro lado, a exposição a preparações diluídas (< 20% de HF) pode não resultar em dor ou achados clínicos por várias horas após a exposição porque a disfunção e morte celular causadas pela hipocalcemia e hipomagnesemia local levam tempo para se desenvolver.
A exposição ao HF pode ser dérmica, oftálmica, oral ou por inalação. A via mais comum de exposição ocupacional ao HF é dérmica.
Sinais e sintomas de exposição a ácido fluorídrico
Os sinais e sintomas da exposição ao ácido fluorídrico variam com base na via de exposição.
Dérmica
A dor costuma ser o primeiro sintoma a se manifestar após uma exposição dérmica e precede os sinais de queimadura química, como eritema (primeiro grau), edema e formação de bolhas (2º grau) ou pigmentação branco-acinzentada (3º grau). Em geral, a dor é mais intensa do que o esperado com base no envolvimento dérmico aparente. Se a queimadura ocorre nos quirodáctilos e leito ungueal, as unhas podem permanecer intactas e a dor pode ser intensa, apesar da aparente ausência de envolvimento ou envolvimento mínimo das unhas e da pele.
Oral
A exposição ocupacional oral ao HF é menos comum, mas pode ocorrer quando a solução aquosa contendo HF é armazenada em recipientes não rotulados (p. ex., garrafas de água). A exposição oral não ocupacional ao HF pode resultar de tentativas de automutilação ou ingestão exploratória por crianças pequenas.
A ingestão de solução diluída de HF pode resultar em eritema e edema orofaríngeo e irritação gastrointestinal; a ingestão de um pequeno volume pode ser assintomática. A ingestão de solução concentrada de HF resulta em gastrite hemorrágica e toxicidade pulmonar semelhantes à exposição por inalação.
Inalatória
A exposição inalatória ao HF mais comumente resulta em dor nas vias respiratórias superiores e torácica (descrita como queimação), tosse e falta de ar. Os pacientes também podem relatar náuseas, vômitos, cefaleia e sensação de queimação na pele exposta ao vapor de HF. O tempo até o início dos sintomas é inversamente proporcional à concentração de HF no ar. Eritema e edema faríngeos podem estar presentes, assim como sibilos, estertores e desconforto respiratório. No caso de exposição por inalação mais grave, os pacientes podem desenvolver alveolite hemorrágica com hemoptise ou insuficiência respiratória aguda hipoxêmica (síndrome do desconforto respiratório do adulto [SDRA]), que pode ser fatal.
Sistêmico
A exposição cutânea, oral ou por inalação ao HF pode resultar em toxicidade sistêmica por fluoreto (a exposição ocular não foi implicada na toxicidade sistêmica). O início da toxicidade sistêmica é mais rápido após a exposição oral ao HF porque neste caso a absorção sistêmica é mais rápida do que na exposição dérmica. A exposição dérmica à solução concentrada de HF pode resultar em toxicidade sistêmica por fluoreto, mesmo quando a área de superfície corporal envolvida é pequena.
A toxicidade sistêmica por fluoreto é caracterizada por hipocalcemia, hipomagnesemia e contratilidade cardíaca prejudicada. Também pode ocorrer hiperpotassemia. Podem ocorrer arritmias cardíacas, como taquicardia ventricular polimórfica (torsades de pointes), fibrilação ventricular e assistolia. A hipocalcemia pode resultar em coagulopatia.
Ocular
A exposição ocular ao HF pode resultar de lesão por salpicos envolvendo solução aquosa ou HF gasoso. Exposição leve (mais diluída) pode causar dor ocular, injeção conjuntival e quemose e pode não se manifestar por horas após a exposição. Se a exposição é mais concentrada, o início dos sintomas é mais rápido; pode ocorrer necrose coagulativa da córnea e ruptura do bulbo do olho.
Diagnóstico da exposição ao ácido fluorídrico
Avaliação clínica
Níveis de eletrólitos
O diagnóstico dos problemas decorrentes da exposição ao ácido fluorídrico começa com a história completa e o exame físico. Os médicos devem obter informações sobre a potencial exposição nas últimas 24 horas, incluindo a via e a duração da exposição, a concentração de HF, outras substâncias químicas na formulação e o uso de equipamento de proteção individual (EPI).
Não há nenhum teste específico para intoxicação por HF; entretanto, hipocalcemia (idealmente medida como cálcio ionizado), hiperpotassemia, hipomagnesemia e elevação de fluoreto sérico (se disponível) podem sugerir a ocorrência de exposição sistêmica. Exceto para as queimaduras mais leves, em gera, os pacientes são internados para monitoramento de toxicidade sistêmica e quaisquer tratamentos indicados.
Não é necessário realizar o teste de função pulmonar imediatamente, mas, se feito, pode detectar um padrão de doença pulmonar restritiva.
Se há suspeita de edema pulmonar, fazer radiografia de tórax e outros exames apropriados (p. ex., oximetria de pulso). Se a queimadura ocorreu nos quirodáctilos, realizam-se prontamente radiografias para verificar se há lesão óssea.
Se houver possibilidade de ter havido exposição sistêmica, realiza-se eletrocardiografia para verificar os efeitos da hipocalcemia (p. ex., intervalo QT prolongado) e da hiperpotassemia (ondas T pontiagudas, alargamento do intervalo QRS, achatamento da onda P, padrão de onda senoidal).
Em geral, deve-se fazer endoscopia no caso de ingestão oral, e deve-se consultar um gastroenterologista e/ou otorrinolaringologista.
Prognóstico para exposição a ácido fluorídrico
O prognóstico depende da via de exposição ao ácido fluorídrico.
Dérmica
O prognóstico após exposição dérmica leve ao HF é bom se o paciente for prontamente avaliado e tratado. Assim como ocorre com outras queimaduras químicas, os sintomas costumam desaparecer em um período de dias a semanas, dependendo da gravidade da queimadura.
Oral
Pacientes que ingeriram solução de HF diluído podem desenvolver irritação orofaríngea ou gastrointestinal (GI) reversível ou podem permanecer assintomáticos e apresentar prognóstico benigno. A ingestão de solução concentrada de HF pode resultar em hemorragia GI fatal ou toxicidade sistêmica por fluoreto, que pode ser fatal. Se os pacientes com queimaduras GI graves sobreviverem, sequelas a longo prazo, como estenoses, podem se desenvolver.
Sistêmico
Pacientes com toxicidade sistêmica por fluoreto têm alto risco de arritmia cardíaca e hipotensão.
Inalatória
O prognóstico após exposição por inalação depende da intensidade e cronicidade da exposição. Se a exposição por inalação é leve a moderada, os sintomas podem desaparecer espontaneamente ao longo de um período de horas a dias. Exposições mais intensas podem resultar em irritação persistente das vias respiratórias superiores [síndrome de disfunção reativa das vias respiratórias superiores (SDRVRS)] ou irritação pulmonar (síndrome de disfunção reativa das vias respiratórias [SDRVR]) que persiste por meses a anos. A exposição crônica ao HF ocupacional pode resultar em síndrome de hiper-reatividade brônquica chamada " asma ocupacional entre trabalhadores da indústria do alumínio". Pode-se utilizar testes em série da função pulmonar para monitorar a SDRVR e a hiper-reatividade brônquica em trabalhadores expostos ao HF.
Ocular
Se a exposição ocular é leve, a irritação conjuntival e quemose (que costumar ocorrer) desaparece ao longo de um período de alguns dias e não há sequelas a longo prazo. Se a exposição é mais grave, a lesão ou descamação da córnea pode resultar em conjuntivite crônica, opacificação ou vascularização da córnea, glaucoma ou ceratite seca.
Tratamento da exposição ao ácido fluorídrico
Vários tratamentos dependendo do tipo de exposição
Descontaminação imediata, se aplicável
Sais de cálcio e magnésio
Dérmica
Deve-se fazer a descontaminação imediata, incluindo a remoção de roupas ou equipamentos de trabalho contaminados e lavagem das áreas afetadas com água por 15 minutos. Após a descontaminação, deve-se aplicar gluconato de cálcio a 2,5% ou gel de carbonato de cálcio na área afetada e cobrir com curativo oclusivo não aderente (para lesões nos dedos, o gel pode ser inserido em uma luva cirúrgica colocada na mão do paciente). A aplicação de sal de cálcio solúvel a áreas expostas ao HF resulta na complexação do cálcio com fluoreto, que forma o fluoreto de cálcio solúvel. Essa reação resulta em um gradiente de concentração de fluoreto que favorece a difusão do HF fora do corpo e em direção ao gel.
Aplica-se cálcio tópico até aliviar a dor.
Se a dor persistir apesar da aplicação de cálcio tópico ou se o paciente foi exposto a soluções concentradas de HF, pode-se administrar gluconato de cálcio por injeção subcutânea ou intra-arterial. Não utilizar essas vias para administrar cloreto de cálcio por causa do risco de necrose tecidual.
Para injeção subcutânea, pode-se infiltrar 0,5 mL de gliconato de cálcio a 5% por centímetro quadrado. A síndrome compartimental iatrogênica é um risco em pequenos compartimentos teciduais (p. ex., a mão). Se essas áreas forem afetadas, deve-se ponderar os riscos e benefícios da infiltração de cálcio. Deve-se injetar não mais que 0,5 mL de solução por dígito.
Para administração intra-arterial, pode-se infundir 50 mL de gluconato de cálcio a 2% na artéria, perfundindo a área afetada ao longo de um período de 4 horas. Deve-se considerar os riscos de canulação arterial ao decidir se esse procedimento deve ser feito.
Todas as exposições, exceto as menores ou superficiais, exigem transferência para um centro de queimados para possível intervenção cirúrgica, incluindo enxerto de pele, desbridamento do tecido necrótico, fasciotomia e amputação.
Oral
Deve-se realizar o esvaziamento gástrico com sonda orogástrica (OG) ou nasogástrica (NG) o mais rápido possível após exposição oral ao HF. É improvável que o esvaziamento gástrico seja benéfico se a ingestão ocorreu em > 1 hora. Pode-se utilizar a mesma sonda OG ou GN para administrar sal de cálcio ou magnésio ao trato GI, embora as evidências de seu benefício sejam limitadas. Assim como outras ingestões de cáusticos, carvão ativado é contraindicado.
Deve-se consultar um gastroenterologista para avaliar a possibilidade de endoscopia.
Sistêmico
Pacientes com toxicidade sistêmica por fluoreto devem ser internados em uma unidade de terapia intensiva para monitoramento cardíaco, eletrocardiografia seriada e, se houver suspeita de contratilidade cardíaca deprimida, ecocardiografia. Faz-se medição seriada dos níveis de cálcio, magnésio, potássio e fosfato, e trata-se conforme necessário.
O tratamento da toxicidade sistêmica por fluoreto inclui sais de cálcio e magnésio, administrados por via IV, para repor o cálcio e o magnésio perdidos via complexação com fluoreto. Administram-se líquidos IV, vasopressores e/ou suporte inotrópico no caso de depressão na contratilidade cardíaca. Pode-se administrar sulfato de magnésio em uma dose de ataque de 4 a 6 g IV durante 60 minutos, seguida de infusão a 2 a 4 g/hora. Deve-se monitorar hipotensão e depressão respiratória nos pacientes. Pode-se administrar gluconato de cálcio em uma dose de ataque de 6 g IV durante 60 minutos, seguida de infusão a 0,5 mEq/kg/hora. Se um catéter venoso central estiver disponível, pode-se utilizar cloreto de cálcio em vez de gluconato de cálcio em uma dose de ataque de 2 g, seguida de infusão a 0,5 mEq/kg/hora. Se a hipocalcemia ou hipomagnesemia persistir ou recidivar, pode-se repetir as doses de ataque de magnésio e cálcio. Exames de sangue em tempo real determinam a quantidade de eletrólitos a suplementar.
Pode-se administrar bicarbonato de sódio IV para a acidemia, embora poucos estudos abordem sua eficácia.
Os íons fluoreto são eliminados por hemodiálise. Deve-se considerar hemodiálise para pacientes com toxicidade sistêmica, embora esses pacientes possam estar clinicamente instáveis demais para serem submetidos ao procedimento.
Inalatória
Pode-se tratar a exposição inalatória com gluconato de cálcio nebulizado; e pode-se administrar gluconato de cálcio a 2,5% e 5%, de maneira intermitente ou contínua. Também pode-se tratar os pacientes com sibilos e broncoespasmo com um beta-agonista nebulizado (p. ex., albuterol), ipratrópio nebulizado e corticoides orais ou IV. Pode-se tratar os pacientes com sintomas semelhantes à SDRA com intervenções padrão para SDRA, incluindo ventilação com pressão positiva, uso de pressão expiratória final positiva alta e posicionamento em decúbito ventral.
Ocular
A descontaminação imediata é o mais importante. A irrigação em uma estação de lavagem dos olhos no local de trabalho deve ser seguida por irrigação contínua a caminho do hospital. Pode-se fazer a irrigação contínua no pronto-socorro utilizando solução salina normal ou água estéril aplicada ao olho (ou olhos) afetado utilizando uma lente de Morgan. Recomenda-se a irrigação com pelo menos 2 a 3 litros de líquido. A irrigação ocular com soluções contendo cálcio, que são irritantes e podem causar lesão na córnea, não deve ser utilizada. Deve-se solicitar a avaliação de um oftalmologista no pronto-socorro, e deve-se providenciar acompanhamento oftalmológico.
Prevenção da exposição ao ácido fluorídrico
Várias organizações [p. ex., Occupational Safety and Health Administration (OSHA), National Institute for Occupational Safety and Health (NIOSH)] fornecem recomendações para minimizar o risco de exposição ao ácido fluorídrico. Essas recomendações são
Fornecer aos trabalhadores informações sobre os riscos específicos do HF antes de eles lidarem com o produto
Limitar o tempo de exposição dos trabalhadores ao HF
Exigir que os trabalhadores usem exaustor funcionando adequadamente e equipamento de proteção individual (EPI) apropriados, como óculos, luvas descartáveis e avental resistente a ácidos
Exigir que os trabalhadores usem calças compridas, mangas compridas e sapatos fechados
Equipar a área de trabalho com chuveiro de segurança e estação de lavagem dos olhos
Disponibilizar gluconato de cálcio para o tratamento da pele
Armazenar o HF adequadamente
Disponibilizar equipamentos de resposta a derramamentos (p. ex., sulfato de magnésio seco, coxins de controle de derramamento, solução de bicarbonato de sódio) em todos os locais em que o HF é utilizado
Pontos-chave
Exposições dérmicas, orais, inalatórias e oculares ao ácido fluorídrico podem ocorrer no local de trabalho.
Os sintomas começam imediatamente após a exposição a formulações concentradas de HF, mas podem tardar várias horas após a exposição a formulações de HF diluídas.
Queimaduras de superfície e complexação de cálcio ou magnésio com o íon fluoreto no HF resultam em hipocalcemia e hipomagnesemia locais, que causam disfunção e morte celulares.
Tratar queimaduras dérmicas e dor intensa decorrentes da exposição dérmica com cálcio dérmico, subcutâneo ou intra-arterial; transferir quase todos os pacientes com queimaduras para um centro de queimados.
Para exposições orais, utilizar sonda orogástrica ou nasogástrica para esvaziar o estômago o mais rápido possível; a ingestão de solução concentrada de HF é tóxica e cáustica e pode ser fatal.
Tratar os pacientes com exposição por inalação com gluconato de cálcio nebulizado; tratar os pacientes que tiveram uma exposição mais concentrada e que apresentam sintomas semelhantes à SDRA com os tratamentos habituais para SDRA.
Internar os pacientes com toxicidade sistêmica por fluoreto (que pode ser decorrente de exposição dérmica, oral ou inalatória) em uma unidade de terapia intensiva para monitoramento e suporte seriados, e tratá-los com magnésio IV e cálcio e, se necessário, vasopressores.
Após exposição ocular, irrigar os olhos imediatamente, de maneira contínua e completa e organizar consulta e acompanhamento com um oftalmologista.