Fisiologia da gestação

PorRaul Artal-Mittelmark, MD, Saint Louis University School of Medicine
Revisado/Corrigido: mai. 2021 | modificado set. 2022
Visão Educação para o paciente

O primeiro sinal de gestação e a razão principal pela qual as gestantes procuram o médico é o atraso menstrual. Para mulheres sexualmente ativas, em idade reprodutiva e com ciclos menstruais regulares, o 1 semana é uma evidência presumida de gestação.

Considera-se que a gestação dura

  • 266 dias a partir do momento da concepção

  • 280 dias a partir do primeiro dia da última menstruação, se esta ocorrer em períodos regulares de 28 dias

A data do parto é estimada com base na última menstruação. O parto em até 2 semanas antes ou depois de sua data provável é considerado normal. Considera-se pré-termo o parto antes das 37 semanas de gestação; considera-se pós-termo o parto após 42 semanas de gestação.

Fisiologia da gestação

A gestação causa modificações em todos os órgãos e sistemas maternos, a maioria retorna ao normal após o parto. De maneira geral as mudanças são mais drásticas em gestações múltiplas se comparadas à gestação única.

Cardiovascular

O débito cardíaco aumenta em 30 a 50%, com início por volta da 6ª semana e valor máximo entre a 16ª e a 28ª semana (normalmente na 24ª semana). O débito cardíaco permanece próximo dos níveis de pico até depois de 30 semanas. Em seguida, o débito cardíacose torna sensível à posição do corpo. Posições que causam aumento uterino (p. ex., posição deitada) que obstrui em parte a veia cava causam diminuição do débito cardíaco. Em média, o débito cardíaco diminui levemente da 30º semana até o parto. Durante o trabalho de parto, o débito cardíaco aumenta mais 30%. Após o parto, o útero contrai e o débito cardíaco permanece de 15 a 25% acima do normal, então diminui lentamente nas próximas 3 a 4 semanas até atingir os valores pré-gestacionais por volta da 6ª semana pós-parto.

O aumento do débito cardíaco decorre principalmente de demandas da circulação uteroplacentária; o volume da circulação uteroplacentária aumenta de modo acentuado e a circulação dentro do espaço interviloso funciona de certa forma como uma derivação arteriovenosa. Enquanto a placenta e o feto se desenvolvem, o fluxo sanguíneo para o útero deve aumentar em torno de 1 L/min (20% do débito cardíaco normal) até o nascimento. As necessidades da pele (para regular a temperatura) e dos rins (para excreção de resíduos fetais) contribuem para o aumento do débito cardíaco.

Para elevar o débito cardíaco, a frequência cardíaca aumenta do valor normal de 70 para valores que chegam a 90 bpm, e o volume sistólico também aumenta. Durante o 2º trimestre, a pressão arterial (PA) normalmente cai (e a pressão de pulso se alarga), embora o débito cardíaco e os níveis de renina e angiotensina aumentem em razão da expansão da circulação uteroplacentária (desenvolvimento dos espaços intervilosos na placenta) e a resistência vascular sistêmica diminua. A resistência diminui porque a viscosidade sanguínea e a sensibilidade à angiotensina diminuem. Durante o 3º trimestre, a PA pode voltar ao normal. Nas gestações gemelares, o débito cardíaco aumenta mais e a PA diastólica é menor na 20ª semana, se comparados à gestação com feto único.

O exercício físico aumenta o débito cardíaco, a frequência cardíaca, o consumo de oxigênio e o volume respiratório/min mais durante a gestação do que em outras situações.

A circulação hiperdinâmica da gestação aumenta a frequência de sopros funcionais e acentua os sons cardíacos. Os exames de radiografia ou ECG podem mostrar o deslocamento cardíaco para uma posição horizontal, com rotação para a esquerda, com aumento do diâmetro transverso. As extrassístoles atriais e ventriculares são comuns durante a gestação. Todas essas mudanças são normais e não devem ser erroneamente diagnosticadas como uma doença cardíaca; podem ser geralmente manejadas com controle, apenas. Entretanto, paroxismos de taquicardia atrial ocorrem com mais frequência na gestante e podem necessitar de digitalização profilática ou fármacos antiarrítmicos. A gestação não afeta as indicações de segurança para cardioversão.

Hematológico

A volemia aumenta proporcionalmente ao débito cardíaco, mas o aumento no volume de plasma é maior (aproximadamente 50%, geralmente de cerca de 1.600 mL para um total de 5.200 mL) do que a massa eritrocítica (aproximadamente 25%); assim, a hemoglobina (Hb) diminui por diluição de cerca de 13,3 para 12,1 g/dL. Essa anemia dilucional diminui a viscosidade do sangue. Em gestações gemelares, a volemia materna aumenta mais (perto de 60%).

O leucograma aumenta ligeiramente para 9.000 a 12.000/mcL. A leucocitose acentuada ( 20.000/mcL) ocorre durante o parto e nos primeiros dias do puerpério.

As necessidades de ferro aumentam em um total de aproximadamente 1 g durante toda a gestação e são maiores durante a 2ª metade da gestação — 6 a 7 mg/dia. O feto e a placenta utilizam aproximadamente 300 mg de ferro e o aumento na massa eritrocítica materna requer 500 mg adicionais. A excreção é de 200 mg. A suplementação de ferro é necessária para prevenir anemia, pois a quantidade absorvida da dieta e o recrutamento dos estoques de ferro (média de 300 a 500 mg) são geralmente insuficientes para suprir a demanda da gestação.

Urinário

As mudanças da função renal acompanham as da função cardíaca. A taxa de filtração glomerular (TFG) aumenta de 30 a 50%, com pico entre a 16ª e a 24ª semana, e permanece nesse nível até próximo do termo, quando pode diminuir ligeiramente porque a pressão do útero sobre a veia cava costuma causar estase venosa nos membros inferiores. O fluxo plasmático renal aumenta proporcionalmente. Como consequência, o nitrogênio da ureia sanguínea geralmente diminui para < 10 mg/dL (< 3,6 mmol/L de ureia), e o nível de creatinina diminui proporcionalmente para 0,5 a 0,7 mg/dL (44 a 62 micromol/L). A dilatação acentuada dos ureteres (hidroureter) é causada por influências hormonais (predominantemente por progesterona) e por obstrução decorrente da pressão do útero aumentado nos ureteres, que também pode causar hidronefrose. No puerpério, o sistema coletor urinário pode levar até 12 semanas para retornar ao normal.

Modificações posturais afetam a função renal, mais durante a gestação do que em outras situações; isto é, a posição de decúbito dorsal aumenta a função renal e a posição ereta diminui a função renal. A função renal também aumenta acentuadamente na posição lateral, especialmente quando deitado no lado esquerdo; essa posição alivia a pressão do útero sobre os grandes vasos quando a gestante está em decúbito dorsal. O aumento posicional da função renal é uma das razões pelas quais a gestante necessita urinar com frequência enquanto tenta dormir.

Respiratória

A função pulmonar se altera nas gestantes, em parte pelo aumento da progesterona e em parte porque o aumento uterino interfere na expansão pulmonar. A progesterona estimula o cérebro a diminuir os níveis de dióxido de carbono (CO2). Para reduzir os níveis de CO2, o volume corrente, o volume-minuto e a frequência respiratória se elevam, o que aumenta o pH plasmático. O consumo de oxigênio cresce cerca de 20% para suprir o aumento metabólico necessário ao feto, à placenta e a vários órgãos maternos. As reservas inspiratória e expiratória, o volume e a capacidade residual e a PCO2 plasmática diminuem. A capacidade vital e a PCO2 plasmática não se alteram. A circunferência torácica aumenta em torno de 10 cm.

Ocorrem hiperemia e edema consideráveis do trato respiratório. Ocasionalmente, ocorrem obstrução nasofaríngea sintomática e congestão nasal, as tubas auditivas ficam transitoriamente obstruídas, assim como o tom e o timbre da voz mudam.

É comum haver dispneia moderada durante esforço e respirações profundas mais frequentes.

Gastrointestinais e hepatobiliares

Na evolução da gestação, o útero aumentado pressiona o reto e as porções inferiores do colo, causando obstipação. A motilidade gastrointestinal diminui em decorrência dos níveis elevados de progesterona que causam relaxamento da musculatura lisa. Pirose e eructações são frequentes, possivelmente como resultado da demora do esvaziamento gástrico e do refluxo gastroesofágico, em razão do relaxamento do esfíncter esofágico inferior e do hiato diafragmático. A produção de ácido clorídrico diminui; desse modo, é incomum o surgimento de úlcera péptica durante a gestação e as úlceras preexistentes tornam-se menos agressivas.

A incidência de doenças da vesícula biliar aumenta um pouco. A gestação afeta sutilmente a função hepática, em especial o transporte de bile. Os testes de função hepática habitualmente são normais, mas os níveis de fosfatase alcalina aumentam de modo progressivo durante o 3º trimestre e podem chegar a 2 ou 3 vezes acima dos valores normais no parto; esse aumento decorre da produção placentária dessa enzima e não da disfunção hepática.

Endócrino

A gestação altera as funções da maioria das glândulas endócrinas, em parte porque a placenta produz hormônios e em parte porque a maioria dos hormônios circula sob a forma de proteínas ligadoras e essas proteínas aumentam durante a gestação.

A placenta produz a subunidade da gonadotropina coriônica humana (beta-hCG), um hormônio trófico que, como os hormônios foliculoestimulantes e luteinizantes, mantém o corpo lúteo e, portanto, previne a ovulação. Níveis de estrogênio e progesterona aumentam cedo durante a gestação porque o beta-hCG estimula os ovários a produzi-los continuamente. Após 9 a 10 semanas da gestação, a própria placenta produz grandes quantidades de estrogênio e progesterona para ajudar a manter a gestação.

A placenta produz um hormônio (similar ao TSH) que estimula a tireoide, causando hiperplasia, aumento de vascularização e moderado aumento de seu tamanho. O estrogênio estimula os hepatócitos, causando aumento dos níveis de globulina ligadora de hormônio tireóideo; assim, embora os níveis da tiroxina possam estar aumentados, os níveis de hormônio tireóideo livres permanecem normais. O aumento da função tireoidea pode se assemelhar ao hipertireoidismo, com taquicardia, palpitação, transpiração excessiva e instabilidade emocional. Entretanto, o hipertireoidismo verdadeiro ocorre em apenas 0,08% das gestações.

A placenta produz o hormônio liberador de corticotrofina (CRH), que estimula a produção materna do hormônio adrenocorticotrófico (ACTH). O aumento dos níveis de ACTH eleva os níveis de hormônios suprarrenais, principalmente de aldosterona e cortisol, contribuindo assim para o edema.

O aumento de produção de corticoides e da produção placentária de progesterona causa resistência insulínica e elevação das necessidades de insulina, da mesma forma que o estresse da gestação e, possivelmente, o aumento dos níveis de lactogênio placentário humano. Insulínase, produzida pela placenta, também pode aumentar as necessidades de insulina, de tal modo que muitas mulheres com diabetes gestacional desenvolvem outras formas mais evidentes do diabetes.

A placenta produz MSH, que aumenta a pigmentação da pele durante a gestação.

A glândula hipófise aumenta cerca de 135% durante a gestação. Os níveis de prolactina no plasma materno aumentam em torno de 10 vezes. A elevação da prolactina está relacionada ao aumento da produção do TRH estimulado pelo estrogênio. A função primária da elevação da prolactina é assegurar a lactação. Os níveis de prolactina retornam ao normal no pós-parto, mesmo nas mulheres que amamentam.

Dermatológico

O aumento dos níveis de estrogênio, progesterona e MSH contribuem para as mudanças pigmentares, apesar de sua patogênese exata ser desconhecida. Essas alterações incluem

  • Melasma (máscara gravídica), que são manchas de pigmento acastanhado que cobre a testa e as proeminências malares

  • Escurecimento da aréola mamária, axila e genitais

  • Linea nigra, uma linha escura que aparece na parte inferior média do abdome

O melasma devido à gestação geralmente retrocede dentro de um ano.

A incidência de angiomas aracneiformes, normalmente um pouco acima da cintura, e de capilares dilatados com parede fina, especialmente nas pernas, é maior durante a gestação.

Manifestações dermatológicas da gestação
Melasma
Melasma

Esta foto mostra manchas marrons nas bochechas de um paciente com melasma.

DR P. MARAZZI/SCIENCE PHOTO LIBRARY

Linea nigra
Linea nigra

A linha negra é uma linha escura que aparece na parte média do abdome durante a gestação.

© Springer Science+Business Media

Aranha vascular
Aranha vascular

Aranhas vasculares (nevus araneus) são pequenos pontos vermelhos brilhantes circundados de capilares que se assemelham às patas de aranha. Depois de liberar pressão suficiente para que fiquem brancos, se preenchem a partir do centro. São normais em muitas pessoas saudáveis. Geralmente aparecem em gestantes ou mulheres que utilizam contraceptivos orais e em pessoas com cirrose hepática.

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Image provided by Thomas Habif, MD.

Sinais e sintomas da gestação

A gestação pode causar ingurgitamento mamário pelo aumento dos níveis de estrogênio (principalmente) e progesterona — uma extensão do ingurgitamento mamário pré-menstrual. Náuseas, às vezes com vômitos, podem ocorrer por causa do aumento da secreção de estrogênio e da subunidade beta da gonadotropina coriônica (beta-hCG) sintetizados pelas células sinciciais da placenta, a partir de 10 dias após a fertilização (ver Concepção e desenvolvimento pré-natal). O corpo lúteo no ovário, estimulado pela beta-hCG, continua a secretar grandes quantidades de estrogênio e progesterona para manter a gestação. Muitas mulheres sentem-se cansadas nesse período e poucas percebem logo a distensão abdominal.

As mães geralmente começam a sentir movimento fetal entre a 16ª e a 20ª semana.

Durante o final da gestação, veias varicosas e edema na extremidade inferior são comuns; a principal causa é a compressão da veia cava inferior pelo útero aumentado.

Os achados do exame pélvico incluem colo do útero mais amolecida e útero irregularmente amolecido e aumentado de tamanho. Em geral, o colo do útero se torna roxo-azulado, provavelmente em razão do aumento do aporte sanguíneo para o útero. Ao redor da 12ª semana de gestação, o útero estende-se acima da pelve para o abdome; na 20ª semana, alcança a cicatriz umbilical e, por volta da 36ª semana, o polo superior chega a quase alcançar o apêndice xifoide.

Diagnóstico da gestação

  • Teste para beta-hCG na urina

Normalmente, faz-se teste de urina e, ocasionalmente, exames de sangue para confirmar ou excluir a gestação, geralmente poucos dias antes do período menstrual atrasado ou logo alguns dias depois da fecundação; ambos são precisos.

Os níveis de beta-hCG, que estão correlacionados com a idade gestacional em gestações normais, podem ser utilizados para determinar se o feto está crescendo de modo normal. A melhor abordagem é comparar 2 valores séricos de beta-hCG, obtidos com 48 a 72 horas de intervalo e medidos pelo mesmo laboratório. Em uma gestação normal habitual, os níveis de beta-hCG dobram aproximadamente a cada 1,4 a 2,1 dias durante os primeiros 60 dias (7,5 semanas e meia) e então começam a decair entre a 10ª e a 18ª semana. A duplicação regular dos níveis de beta-hCG durante o 1º trimestre sugere fortemente crescimento embrionário normal.

Outros sinais aceitos de gestação incluem:

  • Presença de saco gestacional no útero, visto por ultrassonografia, geralmente realizada entre a 4ª e a 5ª semana e correspondendo a níveis séricos de beta-hCG em torno de 1.500 mUI/mL (o conteúdo do saco gestacional pode ser visualizado por volta da 5ª semana)

  • Batimentos cardíacos fetais, visualizados por ultrassonografia em tempo real já na 5ª à 6ª semana

  • Sons do coração fetal, ouvidos por ultrassonografia Doppler já na 8ª e a 10ª semana, se o útero estiver acessível pelo abdome

  • Movimentos fetais, que podem ser sentidos pelo exame físico depois da 20ª semana

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