Tripanossomíase africana

(Doença do sono africana; tripanossomíase humana africana; THA)

PorChelsea Marie, PhD, University of Virginia;
William A. Petri, Jr, MD, PhD, University of Virginia School of Medicine
Revisado/Corrigido: dez. 2022
Visão Educação para o paciente

A tripanossomíase humana africana é uma infecção causada por protozoários do gênero Trypanosoma brucei, transmitida pela picada da mosca tsé-tsé. Sintomas incluem lesões de pele características, febre intermitente, cefaleia, calafrios, edema transitório, linfadenopatia generalizada e meningoencefalite frequentemente fatal. O diagnóstico é feito pela identificação do microrganismo no sangue, em aspirado de linfonodo, ou no líquido cefalorraquidiano ou, algumas vezes, em testes sorológicos. O tratamento é feito com fexinidazol, suramina, pentamidina, melarsoprol ou eflornitina, dependendo da subespécie infectante, da fase clínica e da disponibilidade do fármaco.

A tripanossomíase humana africana é causada pelo Trypanosoma brucei gambiense na África Ocidental e Central e peloT. brucei rhodesiense na África Oriental; as duas espécies são endêmicas em Uganda. Trypanosoma brucei gambiense é responsável por 98% de todos os casos de tripanossomíase africana e o T. brucei rhodesiense responde por 2% dos casos. A Organização Mundial da Saúde está tentando erradicar a tripanossomíase africana e, como resultado dos esforços de controle, houve uma redução drástica (> 95%) no número de casos notificados em todo o mundo. Em 2021, aproximadamente 800 casos combinados foram notificados à OMS, com mais de 90% causados por T. b. gambiense (ver WHO: Human African trypanosomiasis). Em média, 1 caso é diagnosticado nos Estados Unidos a cada ano, sempre em viajantes que retornam de regiões endêmicas para os Estados Unidos.

Os microrganismos são transmitidos por moscas tsé-tsé e podem ser transmitidos de modo pré-natal da mãe para o feto. Raramente, a infecção é transmitida por transfusões de sangue; teoricamente, ela pode ser transmitida por transplante de órgãos.

Outra espécie tripanossômica, Trypanosoma cruzi, é endêmica na América do Sul e Central e causa Doença de Chagas (tripanossomíase americana).

Fisiopatologia da tripanossomíase africana

Tripomastigotas metacíclicos inoculados por moscas tsetse se transformam em tripomastigotas na circulação sanguínea, que se multiplicam por divisão binária e se disseminam pelos vasos linfáticos e pela circulação após a inoculação. Tripomastigotas na circulação sanguínea multiplicam-se até que anticorpos específicos produzidos pelo hospedeiro reduzam drasticamente os níveis de parasitas. Porém, um subconjunto de parasitas escapa da destruição imunitária por uma mudança na glicoproteína de superfície e inicia um novo ciclo de multiplicação. O ciclo de multiplicação e lise se repete.

Mais tarde no curso da tripanossomíase africana, tripanossomos aparecem no líquido intersticial de muitos órgãos, inclusive no miocárdio e, com o tempo, no sistema nervoso central. O ciclo continua quando uma mosca tsé-tsé pica um ser humano ou animal infectado.

Os seres humanos são o principal reservatório de T. b. gambiense, mas esta espécie também pode infectar animais. Animais selvagens são o principal reservatório de T. b. rhodesiense.

Sinais e sintomas da tripanossomíase africana

A tripanossomíase africana tem 3 estágios:

  • Cutânea

  • Hemolinfática

  • Sistema nervoso central

Cutânea

Uma pápula pode se desenvolver no local da picada da mosca tsé-tsé em alguns dias a 2 semanas. Transforma-se em um nódulo indurado, doloroso e vermelho que pode ulcerar (cancro tripanossômico).

Hemolinfática

Febre intermitente, dores de cabeça, dor nas articulações e nervos e edemas faciais transitórios ocorrem durante vários meses na infecção por T. b. gambiense, mas em um período de semanas na infecção por T. b. rhodesiense. Um exantema eritematoso, circinado e evanescente pode se desenvolver. É mais facilmente visível em pacientes de pele clara. Linfadenopatia generalizada ocorre com frequência.

O sinal de Winterbottom (linfonodos aumentados no triângulo cervical posterior) é característico da doença do sono por T. b. gambiense.

Sistema nervoso central (SNC)

Na forma gambiense, o envolvimento do sistema nervoso central ocorre meses a vários anos após o início da doença aguda. Na forma rodesiana, a doença é mais fulminante e a invasão do sistema nervoso central muitas vezes ocorre dentro de algumas semanas a vários meses.

O envolvimento do SNC pode resultar em cefaleia persistente, incapacidade de se concentrar, alteração de personalidade (p. ex., cansaço progressivo e indiferença), sonolência diurna, tremores, ataxia e coma terminal.

Sem tratamento, a morte ocorre após meses do início de doença no caso do T. b. rhodesiense e durante o 2º ou o 3º ano da doença, no caso do T. b. gambiense. Pacientes sem tratamento morrem em coma por desnutrição ou infecções secundárias.

Diagnóstico da tripanossomíase africana

  • Microscopia óptica de amostras de sangue (esfregaços finos ou grossos) ou de outras secreções

Realiza-se o diagnóstico da tripanossomíase africana pela identificação de tripanossomas no líquido de um tumor, aspirado de linfonodo, sangue, aspirado da medula óssea ou, durante o estágio tardio da infecção, no líquido cefalorraquidiano. As fontes preferidas para T. b. rhodesiense são os esfregaços de sangue e aspirado de linfonodo aumentado para T. b. gambiense. As diluições devem ser analisadas para tripanossomos móveis e as manchas devem ser fixadas, coradas com coloração de Giemsa (ou de Field) e analisadas. A concentração de tripanossomas no sangue geralmente é baixa, e as técnicas de concentração (p. ex., centrifugação, centrifugação em miniatura com troca de ânions, técnica quantitativa do creme leucocitário) melhoram a sensibilidade.

As amostras de detecção de anticorpos não têm utilidade clínica porque a seroconversão ocorre após o início dos sintomas. Contudo, um teste de cartão de aglutinação para T. b. gambiense é útil em programas de triagem para identificar candidatos à análise microscópica.

Deve-se fazer a punção lombar em todos os pacientes com tripanossomíase africana. Quando há contaminação liquórica, a pressão de abertura pode aumentar, os níveis de líquido cefalorraquidiano estão elevados nos linfócitos ( 6 células/mcL), proteína total e IgM inespecífica. Além de tripanossomos, células de Mott características (plasmócitos com vacúolos citoplasmáticos que contêm imunoglobina [corpos de Russell) podem estar presentes.

Outros resultados não específicos de laboratório incluem anemia, monocitose e, notadamente, níveis elevados de IgM policlonal no soro.

Tratamento da tripanossomíase africana

O tratamento da tripanossomíase africana é orientado de acordo com a espécie e estágio da doença.

  • Sem envolvimento do SNC, fexinidazol ou, alternativamente, pentamidina contra T. b. gambiense; suramina contra T. b. rhodesiense

  • Com envolvimento do SNC, fexinidazol para T. b. gambiense não grave; eflornitina (se disponível) isoladamente ou em combinação com nifurtimox ou melarsoprol (se eflornitina não estiver disponível), para T. b. gambiense grave; melarsoprol para T. b. rhodesiense

O fexinidazol é o tratamento de primeira escolha contra o T. b. gambiense não grave, com ou sem envolvimento do SNC. (Ver the World Health Organization.) Administra-se fexinidazol por via oral uma vez ao dia durante 10 dias nas doses a seguir:

  • Para pacientes ≥ 35 kg: 1.800 mg/dia na fase de ataque (4 dias), seguido por 1.200 mg/dia na fase de manutenção (6 dias)

  • Para pacientes com 20 a 34 kg: 1.200 mg/dia na fase de ataque (4 dias), seguido de 600 mg/dia na fase de manutenção (6 dias)

Os critérios para tratamento ambulatorial com fexinidazol são adesão confiável à dosagem, ausência de transtornos psiquiátricos e peso corporal ≥ 35 kg.

Os critérios para o tratamento em regime de internação são qualquer uma das seguintes características:

  • Peso corporal < 35 kg

  • Em risco de má adesão

  • História de transtornos psiquiátricos (monitorar se há reações neuropsiquiátricas)

Deve-se avaliar os pacientes com sinais e sintomas de doença grave com punção lombar e exame do líquido cefalorraquidiano (LCR). Pacientes com doença grave (contagem de leucócitos ≥ 100 células/microL no LCR), em que a punção lombar não é viável ou que não podem ser tratados com fexinidazol, devem ser tratados como descrito abaixo.

Sem envolvimento do sistema nervoso central (SNC)

O fexinidazol é o tratamento de primeira escolha para o T. T. b. gambiense não grave sem envolvimento do SNC.

Pentamidine e Suramina são eficazes contra as fases de circulação sanguínea de T. brucei spp., mas não cruzam a barreira hematencefálica e não são úteis para infecção do sistema nervoso central.

Utiliza-se pentamidina para o T. b. gambiense em pacientes não tratados com fexinidazol.

Suramina é o único fármaco eficaz para o estágio hemolinfático de T. b. rhodesiense. Suramina não é utilizada para tratar T. b. gambiense porque, embora potencialmente eficaz, foi associada a efeitos adversos incluindo náuseas, vômito, fotofobia, hiperestesia, neuropatia periférica, nefrotoxicidade, urticária e prurido. Além disso, graves reações de hipersensibilidade podem ocorrer em pacientes co-infectados por Onchocerca volvulus, que é endêmico em muitas áreas da África Ocidental onde o T. b. gambiense ocorre.

A dosagem de isetionato de pentamidina é de 4 mg/kg, por via intramuscular (IM) ou por via intravenosa (IV), uma vez ao dia, durante 7 a 10 dias.

Uma dose inicial de teste da suramina (disponível no Centers for Disease Control and Prevention [CDC]) 100 mg, IV (para excluir hipersensibilidade), é seguida de 20 mg/kg (até 1 g), IV nos dias 1, 3, 7, 14 e 21.

Com envolvimento do sistema nervoso central (SNC)

O fexinidazol é o tratamento de primeira escolha para a doença não grave com envolvimento do SNC decorrente de T. T. b. gambiense.

Quando disponível, usa-se eflornitina, 100 mg/kg, IV a cada 6 horas por 14 dias para doença grave com envolvimento do SNC decorrente de T. b. gambiense (eflornitina é ineficaz para T. b. rhodesiense). A OMS recomenda eflornitina 200 mg/kg IV a cada 12 horas durante 7 dias em combinação com nifurtimox 5 mg/kg por via oral 3 vezes ao dia por 10 dias (1). Pode-se administrar monoterapia com eflornitina (100 mg/kg IV a cada 6 horas por 14 dias) quando o nifurtimox não estiver disponível ou for contraindicado e quando não for possível administrar fexinidazol. Os efeitos adversos da eflornitina são sintomas gastrointestinais, supressão da medula óssea e convulsões. Os efeitos adversos comuns do nifurtimox são anorexia, náuseas, vômitos, perda ponderal, polineuropatia, cefaleia, tontura e vertigem.

Melarsoprol, um arsênico orgânico, é muitas vezes utilizado em países africanos por causa da disponibilidade limitada de eflornitina, embora os efeitos adversos possam ser graves e potencialmente fatais. A dose de melarsoprol é:

  • Para T. b. gambiense: 2,2 mg/kg (dose máxima de 180 mg) IV uma vez ao dia, por 10 dias

  • Para T. b. rhodesiense: 2 a 3,6 mg/kg IV uma vez ao dia por 3 dias; após 7 dias, 3,6 mg/kg uma vez ao dia por 3 dias, seguida depois de 7 dias por outro curso de 3 dias com a mesma dose

Nos Estados Unidos, pode-se obter eflornitina, nifurtimox e melarsoprol a partir do Centers for Disease Control and Prevention (CDC).

Foram propostos esquemas alternativos para pacientes debilitados com envolvimento grave de sistema nervoso central. A recomendação é de fazer exames seriados de acompanhamento, inclusive análise do líquido cefalorraquidiano, a cada 6 meses (mais cedo caso haja recidiva dos sintomas) durante 2 anos.

Os efeitos adversos graves do melarsoprol são reações encefalopáticas, dermatite esfoliativa, toxidade cardiovascular (hipertensão arterial, arritmia e insuficiência cardíaca) e toxicidade habitual aos arsenicais nos sistemas gastrointestinais e renal.

Os corticoides têm sido utilizados para diminuir o risco de reações encefalopáticas.

Não há prova de cura. Após o tratamento, deve-se monitorar os pacientes durante 24 meses para ver se há recidiva. A recorrência dos sintomas exige reexame do LCR à procura de parasitas.

Referência sobre o tratamento

  1. 1. World Health Organization: WHO publishes new guidelines for the treatment of sleeping sickness; August 2019. 

Prevenção da tripanossomíase africana

A prevenção da tripanossomíase africana é evitar áreas endêmicas e proteger-se contra moscas tsé-tsé.

Pessoas que visitam reservas de vida selvagem devem utilizar roupas de manga longa e calças que também cubram os punhos e calcanhares (moscas tsé-tsé picam através de roupas finas) com cores neutras que se misturam com o fundo e devem aplicar repelentes de inseto, embora a eficácia desses repelentes possa ser limitada.

A pentamidina confere alguma proteção contra o T. b. gambiense, mas pode danificar as células beta das ilhotas pancreáticas, resultando em liberação de insulina e hipoglicemia, evoluindo para o diabetes; portanto, não mais é utilizada para profilaxia.

Pontos-chave

  • A tripanossomíase africana é provocada por Trypanosoma brucei gambiense na África Ocidental e Central e por T. b. rhodesiense na África Oriental; moscas tsé-tsé são o principal vetor.

  • Há 3 estágios da doença: cutânea, hemolinfática e sistema nervoso central (doença do sono).

  • Diagnosticar utilizando microscopia óptica de amostras de sangue (esfregaços finos ou grossos) ou outras secreções.

  • O tratamento da tripanossomíase africana varia de acordo com a espécie e estágio da doença.

  • Sem o comprometimento do sistema nervoso central, utilizar fexinidazol ou, alternativamente, pentamidina para T. b. gambiense e suramina para T. b. rhodesiense.

  • No comprometimento do SNC, utilizar fexinidazol para T. b. gambiense não grave; eflornitina (se disponível) isoladamente ou em combinação com nifurtimox ou melarsoprol para T. b. gambiense; e melarsoprol para T. b. rhodesiense.

Informações adicionais

O recurso em inglês a seguir pode ser útil. Observe que este Manual não é responsável pelo conteúdo deste recurso.

  1. Centers for Disease Control and Prevention (CDC): Resources for health professionals: African trypanosomiasis

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