A tripanossomíase humana africana é uma infecção causada por protozoários do gênero Trypanosoma brucei, transmitida pela picada da mosca tsé-tsé. Sintomas incluem lesões de pele características, febre intermitente, cefaleia, calafrios, edema transitório, linfadenopatia generalizada e meningoencefalite frequentemente fatal. O diagnóstico é feito pela identificação do microrganismo no sangue, em aspirado de linfonodo, ou no líquido cefalorraquidiano ou, algumas vezes, em testes sorológicos. O tratamento é feito com fexinidazol, suramina, pentamidina, melarsoprol ou eflornitina, dependendo da subespécie infectante, da fase clínica e da disponibilidade do fármaco.
A tripanossomíase humana africana é causada pelo Trypanosoma brucei gambiense na África Ocidental e Central e peloT. brucei rhodesiense na África Oriental; as duas espécies são endêmicas em Uganda. Trypanosoma brucei gambiense é responsável por 98% de todos os casos de tripanossomíase africana e o T. brucei rhodesiense responde por 2% dos casos. A Organização Mundial da Saúde está tentando erradicar a tripanossomíase africana e, como resultado dos esforços de controle, houve uma redução drástica (> 95%) no número de casos notificados em todo o mundo. Em 2021, aproximadamente 800 casos combinados foram notificados à OMS, com mais de 90% causados por T. b. gambiense (ver WHO: Human African trypanosomiasis). Em média, 1 caso é diagnosticado nos Estados Unidos a cada ano, sempre em viajantes que retornam de regiões endêmicas para os Estados Unidos.
Os microrganismos são transmitidos por moscas tsé-tsé e podem ser transmitidos de modo pré-natal da mãe para o feto. Raramente, a infecção é transmitida por transfusões de sangue; teoricamente, ela pode ser transmitida por transplante de órgãos.
Outra espécie tripanossômica, Trypanosoma cruzi, é endêmica na América do Sul e Central e causa Doença de Chagas (tripanossomíase americana).
Fisiopatologia da tripanossomíase africana
Tripomastigotas metacíclicos inoculados por moscas tsetse se transformam em tripomastigotas na circulação sanguínea, que se multiplicam por divisão binária e se disseminam pelos vasos linfáticos e pela circulação após a inoculação. Tripomastigotas na circulação sanguínea multiplicam-se até que anticorpos específicos produzidos pelo hospedeiro reduzam drasticamente os níveis de parasitas. Porém, um subconjunto de parasitas escapa da destruição imunitária por uma mudança na glicoproteína de superfície e inicia um novo ciclo de multiplicação. O ciclo de multiplicação e lise se repete.
Mais tarde no curso da tripanossomíase africana, tripanossomos aparecem no líquido intersticial de muitos órgãos, inclusive no miocárdio e, com o tempo, no sistema nervoso central. O ciclo continua quando uma mosca tsé-tsé pica um ser humano ou animal infectado.
Os seres humanos são o principal reservatório de T. b. gambiense, mas esta espécie também pode infectar animais. Animais selvagens são o principal reservatório de T. b. rhodesiense.
Image from the Centers for Disease Control and Prevention, Global Health, Division of Parasitic Diseases and Malaria.
Sinais e sintomas da tripanossomíase africana
A tripanossomíase africana tem 3 estágios:
Cutânea
Hemolinfática
Sistema nervoso central
Cutânea
Uma pápula pode se desenvolver no local da picada da mosca tsé-tsé em alguns dias a 2 semanas. Transforma-se em um nódulo indurado, doloroso e vermelho que pode ulcerar (cancro tripanossômico).
Hemolinfática
Febre intermitente, dores de cabeça, dor nas articulações e nervos e edemas faciais transitórios ocorrem durante vários meses na infecção por T. b. gambiense, mas em um período de semanas na infecção por T. b. rhodesiense. Um exantema eritematoso, circinado e evanescente pode se desenvolver. É mais facilmente visível em pacientes de pele clara. Linfadenopatia generalizada ocorre com frequência.
O sinal de Winterbottom (linfonodos aumentados no triângulo cervical posterior) é característico da doença do sono por T. b. gambiense.
Sistema nervoso central (SNC)
Na forma gambiense, o envolvimento do sistema nervoso central ocorre meses a vários anos após o início da doença aguda. Na forma rodesiana, a doença é mais fulminante e a invasão do sistema nervoso central muitas vezes ocorre dentro de algumas semanas a vários meses.
O envolvimento do SNC pode resultar em cefaleia persistente, incapacidade de se concentrar, alteração de personalidade (p. ex., cansaço progressivo e indiferença), sonolência diurna, tremores, ataxia e coma terminal.
Sem tratamento, a morte ocorre após meses do início de doença no caso do T. b. rhodesiense e durante o 2º ou o 3º ano da doença, no caso do T. b. gambiense. Pacientes sem tratamento morrem em coma por desnutrição ou infecções secundárias.
Diagnóstico da tripanossomíase africana
Microscopia óptica de amostras de sangue (esfregaços finos ou grossos) ou de outras secreções
Realiza-se o diagnóstico da tripanossomíase africana pela identificação de tripanossomas no líquido de um tumor, aspirado de linfonodo, sangue, aspirado da medula óssea ou, durante o estágio tardio da infecção, no líquido cefalorraquidiano. As fontes preferidas para T. b. rhodesiense são os esfregaços de sangue e aspirado de linfonodo aumentado para T. b. gambiense. As diluições devem ser analisadas para tripanossomos móveis e as manchas devem ser fixadas, coradas com coloração de Giemsa (ou de Field) e analisadas. A concentração de tripanossomas no sangue geralmente é baixa, e as técnicas de concentração (p. ex., centrifugação, centrifugação em miniatura com troca de ânions, técnica quantitativa do creme leucocitário) melhoram a sensibilidade.
As amostras de detecção de anticorpos não têm utilidade clínica porque a seroconversão ocorre após o início dos sintomas. Contudo, um teste de cartão de aglutinação para T. b. gambiense é útil em programas de triagem para identificar candidatos à análise microscópica.
Deve-se fazer a punção lombar em todos os pacientes com tripanossomíase africana. Quando há contaminação liquórica, a pressão de abertura pode aumentar, os níveis de líquido cefalorraquidiano estão elevados nos linfócitos (≥ 6 células/mcL), proteína total e IgM inespecífica. Além de tripanossomos, células de Mott características (plasmócitos com vacúolos citoplasmáticos que contêm imunoglobina [corpos de Russell) podem estar presentes.
Outros resultados não específicos de laboratório incluem anemia, monocitose e, notadamente, níveis elevados de IgM policlonal no soro.
Tratamento da tripanossomíase africana
O tratamento da tripanossomíase africana é orientado de acordo com a espécie e estágio da doença.
Sem envolvimento do SNC, fexinidazol ou, alternativamente, pentamidina contra T. b. gambiense; suramina contra T. b. rhodesiense
Com envolvimento do SNC, fexinidazol para T. b. gambiense não grave; eflornitina (se disponível) isoladamente ou em combinação com nifurtimox ou melarsoprol (se eflornitina não estiver disponível), para T. b. gambiense grave; melarsoprol para T. b. rhodesiense
O fexinidazol é o tratamento de primeira escolha contra o T. b. gambiense não grave, com ou sem envolvimento do SNC. (Ver the World Health Organization.) Administra-se fexinidazol por via oral uma vez ao dia durante 10 dias nas doses a seguir:
Para pacientes ≥ 35 kg: 1.800 mg/dia na fase de ataque (4 dias), seguido por 1.200 mg/dia na fase de manutenção (6 dias)
Para pacientes com 20 a 34 kg: 1.200 mg/dia na fase de ataque (4 dias), seguido de 600 mg/dia na fase de manutenção (6 dias)
Os critérios para tratamento ambulatorial com fexinidazol são adesão confiável à dosagem, ausência de transtornos psiquiátricos e peso corporal ≥ 35 kg.
Os critérios para o tratamento em regime de internação são qualquer uma das seguintes características:
Peso corporal < 35 kg
Em risco de má adesão
História de transtornos psiquiátricos (monitorar se há reações neuropsiquiátricas)
Deve-se avaliar os pacientes com sinais e sintomas de doença grave com punção lombar e exame do líquido cefalorraquidiano (LCR). Pacientes com doença grave (contagem de leucócitos ≥ 100 células/microL no LCR), em que a punção lombar não é viável ou que não podem ser tratados com fexinidazol, devem ser tratados como descrito abaixo.
Sem envolvimento do sistema nervoso central (SNC)
O fexinidazol é o tratamento de primeira escolha para o T. T. b. gambiense não grave sem envolvimento do SNC.
Pentamidine e Suramina são eficazes contra as fases de circulação sanguínea de T. brucei spp., mas não cruzam a barreira hematencefálica e não são úteis para infecção do sistema nervoso central.
Utiliza-se pentamidina para o T. b. gambiense em pacientes não tratados com fexinidazol.
Suramina é o único fármaco eficaz para o estágio hemolinfático de T. b. rhodesiense. Suramina não é utilizada para tratar T. b. gambiense porque, embora potencialmente eficaz, foi associada a efeitos adversos incluindo náuseas, vômito, fotofobia, hiperestesia, neuropatia periférica, nefrotoxicidade, urticária e prurido. Além disso, graves reações de hipersensibilidade podem ocorrer em pacientes co-infectados por Onchocerca volvulus, que é endêmico em muitas áreas da África Ocidental onde o T. b. gambiense ocorre.
A dosagem de isetionato de pentamidina é de 4 mg/kg, por via intramuscular (IM) ou por via intravenosa (IV), uma vez ao dia, durante 7 a 10 dias.
Uma dose inicial de teste da suramina (disponível no Centers for Disease Control and Prevention [CDC]) 100 mg, IV (para excluir hipersensibilidade), é seguida de 20 mg/kg (até 1 g), IV nos dias 1, 3, 7, 14 e 21.
Com envolvimento do sistema nervoso central (SNC)
O fexinidazol é o tratamento de primeira escolha para a doença não grave com envolvimento do SNC decorrente de T. T. b. gambiense.
Quando disponível, usa-se eflornitina, 100 mg/kg, IV a cada 6 horas por 14 dias para doença grave com envolvimento do SNC decorrente de T. b. gambiense (eflornitina é ineficaz para T. b. rhodesiense). A OMS recomenda eflornitina 200 mg/kg IV a cada 12 horas durante 7 dias em combinação com nifurtimox 5 mg/kg por via oral 3 vezes ao dia por 10 dias (1). Pode-se administrar monoterapia com eflornitina (100 mg/kg IV a cada 6 horas por 14 dias) quando o nifurtimox não estiver disponível ou for contraindicado e quando não for possível administrar fexinidazol. Os efeitos adversos da eflornitina são sintomas gastrointestinais, supressão da medula óssea e convulsões. Os efeitos adversos comuns do nifurtimox são anorexia, náuseas, vômitos, perda ponderal, polineuropatia, cefaleia, tontura e vertigem.
Melarsoprol, um arsênico orgânico, é muitas vezes utilizado em países africanos por causa da disponibilidade limitada de eflornitina, embora os efeitos adversos possam ser graves e potencialmente fatais. A dose de melarsoprol é:
Para T. b. gambiense: 2,2 mg/kg (dose máxima de 180 mg) IV uma vez ao dia, por 10 dias
Para T. b. rhodesiense: 2 a 3,6 mg/kg IV uma vez ao dia por 3 dias; após 7 dias, 3,6 mg/kg uma vez ao dia por 3 dias, seguida depois de 7 dias por outro curso de 3 dias com a mesma dose
Nos Estados Unidos, pode-se obter eflornitina, nifurtimox e melarsoprol a partir do Centers for Disease Control and Prevention (CDC).
Foram propostos esquemas alternativos para pacientes debilitados com envolvimento grave de sistema nervoso central. A recomendação é de fazer exames seriados de acompanhamento, inclusive análise do líquido cefalorraquidiano, a cada 6 meses (mais cedo caso haja recidiva dos sintomas) durante 2 anos.
Os efeitos adversos graves do melarsoprol são reações encefalopáticas, dermatite esfoliativa, toxidade cardiovascular (hipertensão arterial, arritmia e insuficiência cardíaca) e toxicidade habitual aos arsenicais nos sistemas gastrointestinais e renal.
Os corticoides têm sido utilizados para diminuir o risco de reações encefalopáticas.
Não há prova de cura. Após o tratamento, deve-se monitorar os pacientes durante 24 meses para ver se há recidiva. A recorrência dos sintomas exige reexame do LCR à procura de parasitas.
Referência sobre o tratamento
1. World Health Organization: WHO publishes new guidelines for the treatment of sleeping sickness; August 2019.
Prevenção da tripanossomíase africana
A prevenção da tripanossomíase africana é evitar áreas endêmicas e proteger-se contra moscas tsé-tsé.
Pessoas que visitam reservas de vida selvagem devem utilizar roupas de manga longa e calças que também cubram os punhos e calcanhares (moscas tsé-tsé picam através de roupas finas) com cores neutras que se misturam com o fundo e devem aplicar repelentes de inseto, embora a eficácia desses repelentes possa ser limitada.
A pentamidina confere alguma proteção contra o T. b. gambiense, mas pode danificar as células beta das ilhotas pancreáticas, resultando em liberação de insulina e hipoglicemia, evoluindo para o diabetes; portanto, não mais é utilizada para profilaxia.
Pontos-chave
A tripanossomíase africana é provocada por Trypanosoma brucei gambiense na África Ocidental e Central e por T. b. rhodesiense na África Oriental; moscas tsé-tsé são o principal vetor.
Há 3 estágios da doença: cutânea, hemolinfática e sistema nervoso central (doença do sono).
Diagnosticar utilizando microscopia óptica de amostras de sangue (esfregaços finos ou grossos) ou outras secreções.
O tratamento da tripanossomíase africana varia de acordo com a espécie e estágio da doença.
Sem o comprometimento do sistema nervoso central, utilizar fexinidazol ou, alternativamente, pentamidina para T. b. gambiense e suramina para T. b. rhodesiense.
No comprometimento do SNC, utilizar fexinidazol para T. b. gambiense não grave; eflornitina (se disponível) isoladamente ou em combinação com nifurtimox ou melarsoprol para T. b. gambiense; e melarsoprol para T. b. rhodesiense.
Informações adicionais
O recurso em inglês a seguir pode ser útil. Observe que este Manual não é responsável pelo conteúdo deste recurso.