Doenças hepáticas frequentemente produzem alterações e sintomas sistêmicos.
(Ver também Estrutura e função hepáticas e Avaliação do paciente com doença hepática.)
Alterações circulatórias
A hipotensão consequente à hepatopatia avançada pode levar à insuficiência renal. A patogênese da circulação hiperdinâmica (aumento da frequência e do débito cardíacos) e da hipotensão que se desenvolve na hepatopatia avançada ou na cirrose não é bem compreendida, mas é em parte um mecanismo compensatório para vasodilatação esplâncnica periférica extensa. Fatores que podem contribuir na cirrose podem incluir alteração do tônus simpático, produção de óxido nítrico e outros vasodilatadores endógenos, além do aumento da atividade de fatores humorais (p. ex., glucagon).
Para alterações específicas da circulação hepática (p. ex., a síndrome de Budd-Chiari), ver Distúrbios vasculares do fígado.
Anormalidades endócrinas
Intolerância à glicose, hiperinsulinismo, resistência à insulina e hiperglucagonemia estão frequentemente presentes em pacientes com cirrose; os níveis elevados de insulina refletem a diminuição da degradação hepática em vez de um aumento da secreção, enquanto o oposto é verdadeiro para a hiperglucagonemia. Alterações no perfil tireoidiano podem ser consequentes à deficiência de metabolização hepática dos hormônios tireóideos e alterações nas suas proteínas plasmáticas ligantes.
Efeitos sexuais são comuns. Doenças hepáticas crônicas geralmente causam alterações no ciclo menstrual e na fertilidade. Homens com cirrose, principalmente em casos de cirrose alcoólica, geralmente apresentam hipogonadismo (incluindo atrofia testicular, disfunção erétil e diminuição da espermatogênese) e feminização (ginecomastia, hábito feminino). A causa bioquímica exata é desconhecida. A reserva gonadotrópica do eixo hipotalâmico-pituitário muitas vezes se encontra esgotada. Níveis séricos de testosterona estão frequentemente baixos, devido, principalmente, à menor síntese deste hormônio, mas também por aumento da conversão periférica em estrogênios. Os níveis de estrogênios, exceto os de estradiol, estão normalmente aumentados, mas a correlação entre níveis de estrogênios e feminização é complexa. Essas alterações são mais frequentes na doença hepática alcoólica do que na cirrose por outras causas, sugerindo que o próprio álcool, e não a hepatopatia, pode ser o fator principal. De fato, existem evidências de que o álcool tem efeitos tóxicos aos testículos.
Alterações hematológicas
Anemia é comum em pacientes com doença hepática. Fatores que contribuem podem ser perdas sanguíneas, deficiência de ácido fólico, hemólise, supressão medular pelo álcool e os efeitos diretos da hepatopatia.
Leucopenia e plaquetopenia geralmente acompanham a esplenomegalia na hipertensão portal avançada.
Coagulopatias são comuns e envolvem mecanismos fisiopatológicos complexos. Disfunções hepatocelulares e absorção inadequada de vitamina K podem prejudicar a síntese hepática de fatores de coagulação. Tempo de protrombina (TP) anormal e, dependendo da gravidade da disfunção hepatocelular, pode responder à fitonadiona parenteral (vitamina K1) 5 a 10 mg, uma vez ao dia, durante 2 a 3 dias. Plaquetopenia, coagulação intravascular disseminada e alterações no fibrinogênio também contribuem para que ocorra coagulopatia em muitos pacientes.
Alterações renais e eletrolíticas
Alterações renais e eletrolíticas são comuns, especialmente em pacientes com ascite.
A hipopotassemia pode resultar de excesso de perda urinária de potássio, em razão de altas taxas circulantes de aldosterona, retenção renal de íons de amônia em troca por potássio, acidose tubular renal secundária, ou uso de diuréticos. O tratamento consiste em administração de suplementos de cloreto de potássio por via oral e suspensão ou redução temporária do uso de diuréticos espoliadores de potássio.
A hiponatremia é comum embora os rins muitas vezes possam reter avidamente o sódio (ver Ascite: fisiopatologia); em geral, ocorre na doença hepatocelular avançada e é difícil de corrigir. A sobrecarga relativa de água é muito mais frequentemente responsável do que a depleção de sódio corporal total; a depleção de potássio também pode contribuir. Restrição de água e suplementos de potássio podem ajudar; diuréticos que aumentam a depuração de água livre podem ser utilizados em casos graves ou refratários. A administração intravenosa de soro fisiológico só é indicada se a hiponatremia grave provocar convulsões, ou se houver suspeita de depleção corporal de sódio; deve-se evitá-la em pacientes cirróticos, com retenção de líquido, uma vez que pode piorar a ascite e elevar apenas temporariamente os níveis séricos de sódio.
Insuficiência hepática avançada pode alterar o equilíbrio ácido-básico, geralmente provocando alcalose metabólica. Níveis de albumina sanguínea costumam estar baixos por causa da síntese hepática prejudicada; sangramentos gastrointestinais (GI) causam elevações devido à maior carga entérica em vez de disfunção renal. Quando o sangramento GI eleva a ureia, os valores normais de creatinina tendem a confirmar a função renal normal.
A insuficiência renal pode refletir
Alterações raras que afetam diretamente tanto os rins quanto o fígado (p. ex., toxicidade pelo tetracloreto de carbono)
Choque circulatório com má perfusão renal, com ou sem necrose tubular aguda
Insuficiência renal funcional, geralmente chamada de síndrome hepatorrenal (SHR)
Síndrome hepatorrenal
Essa síndrome consiste em
Oligúria progressiva e azotemia que ocorre na ausência de dano estrutural aos rins
A síndrome hepatorrenal geralmente ocorre em pacientes com hepatite alcoólica ou cirrose avançada com ascite. Considera-se que a patogênese envolve vasodilatação extrema da circulação arterial esplâncnica, resultando em queda do volume vascular central circulante e subsequente vasoconstrição do vaso renal. Seguem-se reduções neurais ou humorais do fluxo sanguíneo renocortical, resultando no decréscimo da taxa de filtração glomerular. Concentrações baixas de sódio urinário e sedimento benigno geralmentedistinguem a SHR da necrose tubular aguda, mas a azotemia pré-renal pode ser mais difícil de diferenciar; em casos duvidosos, deve-se testar a resposta à administração de volume.
Uma vez estabelecida, a insuficiência renal consequente à síndrome hepatorrenal não tratada é, geralmente, rapidamente progressiva e fatal (SHR do tipo 1), apesar de alguns casos serem menos graves, com insuficiência renal mais leve e estável (tipo 2).
Terapia combinada com vasoconstritores (tipicamente, midodrina, octreotida ou terlipressina) e expansores de volume (tipicamente, albumina) pode ser eficaz. Pode-se utilizar infusão de noradrenalina nos casos refratários e titulada de acordo com o débito urinário e pressões arteriais médias.
Se a síndrome hepatorrenal não responder ao tratamento médico, deve-se encaminhar os pacientes para transplante de fígado.
Anomalias pulmonares
A síndrome hepatopulmonar consiste na hipoxemia causada pela vasodilatação microvascular pulmonar em pacientes com hipertensão portal. A síndrome hepatopulmonar tem alta taxa de mortalidade e o prognóstico é ruim sem um transplante de fígado (a única cura para essa doença). Portanto, deve-se encaminhar rapidamente os pacientes com síndrome hepatopulmonar para transplante de fígado. A estratificação de risco para o transplante envolve a medição do grau de hipoxemia com uma gasometria arterial ao ar ambiente. Se os pacientes têm uma PaO2 em ar ambiente entre 50 e 60, eles podem receber pontos de exceção MELD (modelo para doença hepática em estágio terminal) a fim de aumentar sua classificação na lista de transplante de fígado e ajudá-los a ter acesso ao transplante mais rapidamente.
Hipertensão portopulmonar é hipertensão arterial pulmonar em pacientes com hipertensão portal que não tem causas secundárias. É necessária uma avaliação cuidadosa da condição hemodinâmica no cateterismo cardíaco direito para distinguir a hipertensão portopulmonar da pulmonar tradicional e ajudar a determinar o papel do transplante de fígado.