Cólera

PorLarry M. Bush, MD, FACP, Charles E. Schmidt College of Medicine, Florida Atlantic University;
Maria T. Vazquez-Pertejo, MD, FACP, Wellington Regional Medical Center
Revisado/Corrigido: jun. 2024
Visão Educação para o paciente

A cólera é uma infecção aguda do intestino delgado causada pela bactéria Gram-negativa Vibrio cholerae. V. cholerae secreta uma toxina que causa diarreia aquosa abundante, causando desidratação, oligúria e colapso circulatório. A infecção tipicamente ocorre por meio de água ou mariscos contaminados. O diagnóstico é por cultura ou sorologia. O tratamento requer reidratação vigorosa e reposição de eletrólitos mais doxiciclina.

O agente etiológico, V. cholerae, é um bacilo Gram-negativo, aeróbio, curto, curvo e móvel que produz enterotoxina, uma proteína que induz a hipersecreção de uma solução eletrolítica isotônica pela mucosa do intestino delgado. Os seres humanos são o único reservatório natural conhecido para V. cholerae. Após penetrar na camada de muco, V. cholerae coloniza o revestimento epitelial do intestino e secreta toxina colérica. Esses organismos não invadem a parede intestinal; assim, nenhum ou poucos leucócitos são encontrados nas fezes.

As epidemias de cólera são causadas apenas pelos sorogrupos O1 e O139 do V. cholerae. Tanto o El Tor como os biótipos clássicos de V. cholerae O1 podem causar doença grave. Mas infecção leve ou assintomática é muito mais comum com o biotipo El Tor predominante e com os sorogrupos não O1 e não O139 do V. cholerae.

A cólera é disseminada por ingestão de água, mariscos e outros alimentos contaminados pelos excrementos de pessoas com infecção sintomática ou assintomática. Contatos domiciliares dos pacientes com cólera têm alto risco de infecção que provavelmente ocorre por meio de fontes compartilhadas de água e alimentos contaminados. A transmissão de uma pessoa para outra é menos provável de ocorrer porque é necessário um grande inóculo do microrganismo para transmitir a infecção.

A cólera é endêmica em regiões da Ásia, Oriente Médio, África, América do Sul e Central e Costa do Golfo dos Estados Unidos. Em 2010, um surto começou no Haiti e durou até 2017. Mais tarde se disseminou para a República Dominicana e Cuba. Durante esse surto, mais de 820.000 pessoas adoeceram e quase 10.000 morreram. Casos transportados para Europa, Japão e Austrália provocaram epidemias localizadas. Um surto no Iêmen começou em 2016 e ainda está em andamento. Esse surto teve efeitos devastadores ainda maiores. Mais de 2,5 milhões de pessoas no Iêmen adoeceram e quase 4.000 morreram. Acredita-se que seja o maior e mais rápido surto de cólera na história moderna e, em seu pico em 2019, representou mais de 90% dos casos de cólera no mundo. O Haiti também teve um novo surto que começou no final de 2022 depois que o país foi declarado livre de cólera por 3 anos (1). Esse surto ainda está em andamento.

Os surtos de cólera aumentaram globalmente desde 2021 e os casos relatados pela OMS dobraram de 2021 para 2022. Sete países na África e na Ásia notificaram surtos com > 10.000 casos cada em 2022 (2, 3).

Em áreas endêmicas, as epidemias ocorrem geralmente durante os meses quentes. A incidência é mais alta em crianças, especialmente em crianças pequenas e/ou desnutridas. Em áreas recentemente afetadas, as epidemias podem ocorrer durante qualquer estação e pessoas de todas as idades são igualmente suscetíveis.

Uma forma mais branda de gastroenterite é causada pelos sorogrupos O1 e O139 de V. cholerae não colérico, que não produzem a toxina da cólera.

A suscetibilidade à infecção varia e é maior em pessoas com tipo sanguíneo O. Como o vibrião é sensível ao ácido gástrico, hipocloridria e acloridria são fatores predisponentes, incluindo em pacientes tomando medicamentos para suprimir o ácido gástrico.

Pessoas que vivem em áreas endêmicas gradualmente adquirem uma imunidade natural.

Referências

  1. 1. Vega Ocasio D, Juin S, Berendes D, et al. Cholera Outbreak - Haiti, September 2022-January 2023. MMWR Morb Mortal Wkly Rep. 2023;72(2):21-25. Publicado em 13 de janeiro de 2023. doi:10.15585/mmwr.mm7202a1

  2. 2. Larkin H. WHO Report: Cholera Resurgent in 2022 After Years of Decline. JAMA. 2023;329(3):200. doi:10.1001/jama.2022.23551

  3. 3. World Health Organization = Organisation mondiale de la Santé: Weekly Epidemiological Record, 2023, vol. 98, 38 [‎full issue]‎. Weekly Epidemiological Record = Relevé épidémiologique hebdomadaire, 98 (‎38)‎, 431-452.

Sinais e sintomas da cólera

O período de incubação para cólera é 1 a 3 dias. A cólera pode ser subclínica, caracterizada por um episódio de diarreia não complicada e discreta, ou uma doença fulminante, potencialmente letal.

O início dos sintomas é geralmente abrupto, indolor, com diarreia aquosa e vômitos. Náuseas significantes estão tipicamente ausentes. Evacuação de fezes em adultos pode exceder 1 L/hora, mas geralmente é muito menor. Muitas vezes, as fezes consistem em evacuação líquida sem material fecal (fezes em água de arroz).

A intensa depleção de água e eletrólitos provoca intensa sede, oligúria, cãibras dos músculos, fraqueza e perda acentuada de turgor dos tecidos, com olhos afundados e pregas de pele nos dedos. Também ocorrem hipovolemia, hemoconcentração, oligúria e anúria e acidose metabólica intensa com depleção de potássio (mas concentração normal de sódio no soro). Quando não tratada, pode ocorrer colapso circulatório com cianose e estupor. A hipovolemia prolongada pode provocar necrose tubular renal aguda.

A cólera não tratada causa morte em > 50% das pessoas, mas com reidratação oportuna, a morte ocorre em aproximadamente 1% das pessoas (1).

A maioria dos pacientes elimina V. cholerae dentro de 2 semanas após a interrupção da diarreia, mas alguns se tornam portadores crônicos nas vias biliares.

Referência sobre sinais e sintomas

  1. 1. Fournier JM, Quilici ML. Choléra [Cholera]. Presse Med. 2007;36(4 Pt 2):727-739. doi:10.1016/j.lpm.2006.11.029

Diagnóstico da cólera

  • Cultura de fezes e sorogrupagem/subtipagem

Confirma-se o diagnóstico da cólera por cultura de fezes (é recomendável o uso de meio seletivo) mais sorogrupagem/subtipagem subsequente.

Há testes para V. cholerae disponíveis em laboratórios de referência; a reação em cadeia da polimerase (PCR) também é uma opção. Testes rápidos com tiras reagentes para a cólera estão disponíveis para uso na saúde pública em áreas com acesso limitado a exames laboratoriais; contudo, a especificidade deste teste não é ideal, de modo que amostras positivas ao teste com tira reagente devem ser confirmadas por cultura, se possível.

A cólera deve ser diferenciada das doenças clinicamente semelhantes causadas por cepas produtoras de enterotoxinas de Escherichia coli e, ocasionalmente, por Salmonella e Shigella.

Eletrólitos séricos, ureia e creatinina devem ser medidos.

Tratamento da cólera

  • Reposição de líquidos

  • Doxiciclina, azitromicina, furazolidona (não disponível nos Estados Unidos), ou sulfametoxazol-trimetoprima (SMX-TMP) ou ciprofloxacina, dependendo do resultado do teste de suscetibilidade

Reposição de líquidos

A reposição de líquidos perdidos é essencial. Casos leves podem ser tratados com fórmulas padrão de reidratação oral. A correção rápida de hipovolemia grave é vital. Prevenção ou correção de acidose metabólica e hipopotassemia são importantes. Para pacientes gravemente hipovolêmicos e desidratados, deve ser empregada reposição intravenosa com líquidos isotônicos (ver Reidratação oral). Água também deve ser dada livremente pela boca.

Para repor perdas de potássio, pode-se acrescentar cloreto de potássio, 10 a 15 mEq/L (10 a 15 mmol/L), à solução intravenosa; ou pode-se administrar bicarbonato de potássio, 1 mL/kg, por via oral, de uma solução a 100 g/L 4 vezes ao dia. Reposição de potássio é especialmente importante para crianças com pouca tolerância à hipopotassemia.

Quando o volume intravascular for restabelecido (fase de reidratação), as quantidades repostas devem igualar o volume de fezes medido (fase de manutenção). Hidratação adequada é confirmada por meio de avaliação clínica frequente (frequência e intensidade do pulso, turgor da pele, produção de urina). Plasma, expansores de volume plasmático e vasopressores não devem ser utilizados no lugar de água e eletrólitos.

Solução oral de glicose-eletrólito é eficaz na substituição de perdas de fezes e pode ser utilizada após reidratação intravenosa inicial, sendo possivelmente o único meio de reidratação em áreas epidêmicas em que o suprimento de líquidos parenterais é limitado. Pacientes com desidratação discreta ou moderada, capazes de ingerir líquidos, podem ser reidratados exclusivamente com solução oral (aproximadamente 75 mL/kg em 4 horas). Aqueles com desidratação mais grave necessitam mais e podem precisar receber o líquido por meio de sonda nasogástrica.

A solução de reidratação oral (SRO) recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) contém 13,5 g de glicose, 2,6 g de cloreto de sódio, 2,9 g de di-hidrato de citrato trissódico (ou 2,5 g de bicarbonato de potássio) e 1,5 g de cloreto de potássio por litro de água potável. Essa solução é mais bem preparada utilizando pacotes pré-medidos, selados e amplamente disponíveis de glicose e sais; um pacote é misturado com 1 L de água limpa. O uso desses pacotes de SRO preparados minimiza a possibilidade de erro quando pessoas não treinadas misturam a solução. Se pacotes de SRO não estão disponíveis, um substituto razoável pode ser produzido misturando metade da pequena colher de sal e 6 colheres pequenas de açúcar em 1 L de água limpa. A SRO deve ser continuada ad libitum após a reidratação em quantidade pelo menos igual à perdida em fezes contínuas e vômitos.

Dicas e conselhos

  • Para minimizar a possibilidade de erros de mistura causados por pessoal não treinado, utilizar solução de reidratação oral pronta quando possível para tratar a desidratação causada pela cólera; se esta não estiver disponível, misture meia colher de chá de sal e 6 colheres de chá de açúcar em 1 L de água limpa.

Alimentos sólidos só devem ser dados após cessarem os vômitos e o apetite retornar.

Antimicrobianos

O tratamento precoce com um antimicrobiano oral eficaz erradica vibriões, e geralmente reduz o volume de fezes para 50% e geralmente cessa a diarreia em 48 horas. A escolha do antimicrobiano deve ser feita com base na suscetibilidade de V. cholerae isolado da comunidade (1).

Recomenda-se doxiciclina como tratamento de primeira linha para adultos (incluindo gestantes) e crianças. Se for documentada resistência à doxiciclina, azitromicina e ciprofloxacina são alternativas [ver também Recommendations for the Use of Antibiotics for the Treatment of Cholera do Centers for Disease Control and Prevention (CDC)].

As doses orais recomendáveis (ver também recommendations do CDC) para cepas suscetíveis incluem

  • Doxiciclina: para pacientes ≥ 12 anos de idade, incluindo gestantes, 1 dose única de 300 mg; para crianças < 12 anos de idade, 1 dose única de 2 a 4 mg/kg

  • Azitromicina: para pacientes ≥ 12 anos de idade, incluindo gestantes, 1 dose única de 1 g; para crianças < 12 anos, 1 dose única de 20 mg/kg (máximo de 1 g)

  • Ciprofloxacino: para pacientes ≥ 12 anos de idade, incluindo gestantes, 1 dose única de 1 g; para crianças < 12 anos, 1 dose única de 20 mg/kg (máximo de 1 g)

A suplementação de zinco reduziu a gravidade e a duração da doença em crianças em áreas com poucos recursos no mundo (2).

Referências sobre o tratamento

  1. 1. Leibovici-Weissman Y, Neuberger A, Bitterman R, Sinclair D, Salam MA, Paul M. Antimicrobial drugs for treating cholera. Cochrane Database Syst Rev. 2014;2014(6):CD008625. Publicado em 19 de junho de 2014. doi:10.1002/14651858.CD008625.pub2

  2. 2. Roy SK, Hossain MJ, Khatun W, et al. Zinc supplementation in children with cholera in Bangladesh: randomised controlled trial. BMJ. 2008;336(7638):266-268. doi:10.1136/bmj.39416.646250.AE

Prevenção da cólera

Para controlar a cólera, os excrementos humanos devem ser dispostos corretamente e o suprimento de água deve ser purificado. Nas regiões endêmicas, a água ingerida deve ser fervida ou clorada, e legumes e mariscos devem ser completamente cozidos.

A profilaxia antibiótica para contatos domiciliares dos pacientes com cólera não é recomendada porque não há dados suficientes que corroborem essa medida. Além disso, a resistência a antibióticos surgiu em epidemias anteriores ao administrar profilaxia com antibióticos a contatos domiciliares de pacientes com cólera.

Vacinas contra cólera

Várias vacinas orais contra cólera estão disponíveis.

Uma vacina monovalente com o vírus atenuado da cólera, em dose única e liofilizada, a V. cholerae CVD 103-HgR (Vaxchora), está disponível nos Estados Unidos para pessoas entre 2 e 64 anos de idade que viajam para áreas infectadas por cólera. Ela protege contra doenças causadas pelo V. cholerae O1, reduzindo a chance de diarreia moderada e grave em 90% em 10 dias após a vacinação e em 80% 3 meses depois (1). A eficácia da essa vacina depois de 3 a 6 meses é desconhecida.

3 vacinas orais de células inteiras mortas estão disponíveis para uso em crianças e adultos em todo o mundo, mas não nos Estados Unidos:

  • Uma vacina monovalente (vacina contra diarreia e cólera dos viajantes [Dukoral]) contém apenas as bactérias O1 e El Tor V. cholera mais uma pequena quantidade de toxina de cólera não tóxica da subunidade b; antes de tomar, deve ser misturado ao líquido tampão (o pacote de tampão é dissolvido em 150 mL de água fria).

  • Duas vacinas bivalentes (ShanChol e Euvichol) contêm sorogrupos O1 e O139 de V. cholera e não têm componentes adicionados, eliminando a necessidade de ingestão de líquidos no momento da vacinação.

Essas 3 vacinas fornecem 60 a 85% de proteção por até 2-3 anos (2). Exigem 2 doses e doses de reforço são recomendadas após 2 anos para pessoas em risco permanente de cólera.

Uma vacina parenteral de células inteiras injetável, anteriormente preparada a partir de cepas de V. cholerae não é mais utilizada por causa de sua baixa eficácia e efeitos adversos.

Referências sobre prevenção

  1. 1. Collins JP, Ryan ET, Wong KK, et al. Cholera Vaccine: Recommendations of the Advisory Committee on Immunization Practices, 2022. MMWR Recomm Rep. 2022;71(2):1-8. Publicado em 30 de setembro de 2022. doi:10.15585/mmwr.rr7102a1

  2. 2. Song KR, Lim JK, Park SE, et al. Oral Cholera Vaccine Efficacy and Effectiveness. Vaccines (Basel). 2021;9(12):1482. Publicado em 15 de dezembro de 2021. doi:10.3390/vaccines9121482

Pontos-chave

  • Os sorogrupos O1 e O139 do V. cholerae secretam uma enterotoxina que podem causar doença diarreica grave, algumas vezes fatal, que muitas vezes ocorre nos grandes surtos causados por exposição em massa à água ou aos alimentos contaminados.

  • Outros sorogrupos de V. cholerae podem causar doença mais leve não epidêmica.

  • Diagnosticar por meio de cultura de fezes e sorotipagem; um teste rápido com tiras reagentes ajuda na identificação de surtos em áreas remotas.

  • A reidratação é crítica; a solução de reidratação oral é adequada para a maioria dos casos, mas os pacientes com depleção grave de volume exigem líquidos IV.

  • Administrar às pacientes infectadas ≥ 12 anos de idade, incluindo gestantes, doxiciclina, azitromicina ou ciprofloxacina, dependendo dos resultados dos testes de sensibilidade.

Informações adicionais

O recurso em inglês a seguir pode ser útil. Observe que este Manual não é responsável pelo conteúdo deste recurso.

  1. Centers for Disease Control and Prevention (CDC): Recommendations for the Use of Antibiotics for the Treatment of Cholera

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